AFETadOS

31 de dezembro de 2024

Antes que chegue o fim.

Durante segundos elucubrei o movimentar de estonteantes passos frente as írises que buscavam algo a inspirar.

Rio de Janeiro. 

2024.

Novembro.

Copacabana.

32 graus.

Uma manhã querida onde os passos matinais almejavam algo que destrancasse a brevidade da linguagem, as repetições, as pausas e ânsias. Até então, sucessivos intervalos dentro.

Afinal, temia-se, pois a maioria das doenças que as pessoas têm são poemas presos. Tumores, nódulos, pedras. Tremores. Mas, procurava-se a palavra líquida e poemas que colocassem os pés no chão.

As palavras de Duras* ressoavam a cada inspirar. Escrever é vida, é morte, como o encontro do mar com a água doce de Oxum.

Sim.

O destrancar foi iniciado no ritual num tampar de olhos. Olhou-se pro dentro.

Necessário era estar sozinha com a escrita. Era tentar não morrer. Se perder aí. Mergulhar.

A tal solidão mistificada, adjetivada perfidamente, substituída por uma palavra possível, menos doída, foi evocada na impossibilidade do olhar por segundos o fora. Era isso. O essencial precisava ser sentido. Aos poucos a solidão era percebida percorrendo os poros, as veias e corriam internamente. Escorriam.

Já era possível brincar e brindar com as palavras e amarrá-las às sensações, sentimentos e emoções que aos poucos brincavam entre si. Possibilitar o espaço pra elas serem. Mas, ainda algo faltava. Ainda quando saíam, se dissipavam. A dança nas colocações não acontecia.

Assim ficaram e tentaram fincar. Do lado de cá enquanto o tempo corria e escorria, enquanto a vida fluía.

O tempo que passava nos dias proporcionavam encontros precisos. A forma e o formato se formavam nos fatos…

Nos braços de Kierkegaard descobriu-se que o humano é uma síntese de infinitude e  de  finitude,  do temporal e do eterno, de liberdade e de necessidade.

O colo de Heidgger chamou a refletir sobre a própria existência, a questionar o sentido da vida e a buscar uma maneira mais autêntica de ser neste mundo, que alguém se constitui a cada instante, em todas as suas relações com os outros e com o mundo.

Mas, Seu Zé, foi preciso.

–  Cê tá cheia. Tá vendo este copo aqui? Cabe mais nada, mulher.

–  Ebó na veia.

Vento que venta. Leveza que mora. Voando por dentro. Rasante na Alma. Peito que chora. Axé que dança no todo.

Axé…

**Quando, no meio de uma entrega ou expectativa apaixonada, o esperado subitamente nos decepciona, e o mundo se torna tão “outro”, a ponto de nos desenraizar totalmente roubando nosso chão, então, mais tarde, após termos reencontrado um apoio firme, voltamos em pensamentos a esses instantes, dizendo: “Caímos dos céus como que atingidos por um raio”. 

***E então, quando penso que uma palavra, pode mudar tudo, quando penso que um passo descobre o mundo, um novo mundo nasce; passo.

Rio de Janeiro.

Trinta dos dias do cheiro do fim.

Na Aldeia que celebra.

A Sanfona no peito.

No afeto dos movimentos.

Na alegria que escorre. 

Na poeira que sobe.

Nos passos deslizados no chão chorado e descansado do povo trabalhador.

Dancemos.

Antes que chegue o fim.

*Livro “Escrever” de Marguerite Duras
** O título do original: “Traum und Existenz”, Binswanger, Ludwig 1992/94: Ausgewählte Werke, v. 3, pp. 95-119. Este texto continua a série de traduções, iniciada pelos artigos de Medard Boss e de Henri Maldiney, que Natureza humana vem publicando com o objetivo de promover a recepção crítica de teorias psicoterápicas elaboradas em diálogo com Heidegger (N. do E.)
*** adaptação do Poema “Penso e passo” de Alice Ruiz.

Angélica Fontes

Psicanalista Winnicottiana, Educadora e Professora de Psicanálise e aprendiz de Psicologia.