A mulher não é uma ideia nem um conceito – mas uma pessoa. Essa parece ser uma das mensagens centrais do filme. Como Mariana, Joana, Carla etc. não são pensamentos abstratos em nossas mentes, devemos parar de tratá-las como tais. Pois, ao que tudo indica, sempre estamos comparando e julgando a mulher com a ‘noção perfeita’ de mulher. Em um ponto do longa-metragem, Gloria (alguém do mundo real; não da ‘Barbielândia’) diz para a protagonista:

“Precisamos ter dinheiro, mas não podemos pedir dinheiro, pois isso é vulgar. Precisamos ser líderes, mas não podemos ser cruéis. Precisamos liderar, mas não podemos sufocar as ideias das outras pessoas. Você precisa ser uma mulher de carreira, mas também cuidar dos outros. Você precisa responder pelo comportamento inadequado dos homens – o que é absurdo –, mas se você apontar isso, é acusada de estar reclamando.”

Ou seja, como as mulheres são seres existentes, concretos no mundo, nunca conseguirão se encaixar ou incorporar completamente esse conceito de mulher. Elas são singularidades com vidas reais, únicas, que não podem ser reduzidas a uma imagem ou representação do ‘feminino’. Primeiro, porque nenhum ente é capaz de encarnar sua idealização; segundo, porque ser avaliado de acordo com um parâmetro exemplar (ou ‘padrão’, como chamam hoje em dia) é opressivo e atroz.
Uma das consequências mais palpáveis dessa transformação da mulher em noção (dessa ‘nocionalização’ do feminino) é sua simultânea idealização e objetificação. Essas duas conversões da mulher, na verdade, são simplesmente dois lados da mesma moeda: enquanto referência de admiração, a mulher é bonita, inteligente, legal, mãe responsável, esposa leal – todos os adjetivos que o homem comumente atribui à ‘musa perfeita’; enquanto referência de subordinação, a mulher é um corpo – bonita ou feia, gostosa ou gorda, malhada ou fora de forma – todos os adjetivos que o homem geralmente coloca na mulher enquanto ‘produto a ser usado’. – Idealizar e objetificar são dois modos de criticar uma mulher por nunca conseguir ser a materialização pura de seu ‘conceito’.
Mas e a ‘Barbie’?, vocês perguntam. Ora, a Barbie é uma ideia. E o filme inteiro nos mostra a jornada dessa boneca, que no fundo é só uma fantasia, se tornando uma ‘mulher de verdade’ – com todas suas contradições, falhas e dores. (A versão infanto-masculina disso talvez seja “Pinóquio”, o que exibe o nível de superficialidade do ‘menino moderno’.)
Enfim, “Barbie” nos conta uma estória sobre um conceito se realizando, virando ‘mulher’. E ele a todo momento denuncia e expõe os perigos do caminho inverso: de achar que mulheres são só imagens em nossas cabeças, ou corpos bonitos sem alma ou vida.
– O que é uma boneca senão uma fantasia em nossa mente ou um objeto inanimado no quarto?

Michael Gartrell 2023

Michael Gartrell

Formado em filosofia, hoje levo adiante um doutorado sobre a história da percepção. Escritor e acadêmico voltado para pintura e cinema.

A arte, muitas vezes, é inconsciente da realidade que ela manifesta. Estamos aqui para entender o que ela tornou visível mas se recusa a enxergar.

  michael.gartrell@hotmail.com