Ver ou não ver? Filosofia do cinema

6 de dezembro de 2022

Doug (1991-1998)

[Edição especial: série]

Qual é a filosofia de Doug Funnie? Que princípios metafísicos estão implícitos nesse desenho animado da Nickelodeon? Há valores sócio-políticos ou um programa moral oculto na série?

Concentremos, então, no protagonista. Doug Funnie é, resumidamente, um perdedor. Ele é caçoado por Roger Klotz, o bully ou vilão do cartoon; é tido como ingênuo ou singelo pelos próprios pais e professores; sua irmã, Judy, a aspirante excêntrica à atriz, o acha entediante e ‘comum’; a Patti Mayonnaise mesma, sua paixonite, pensa e trata ele, às vezes, com complacência ou pena. – Em suma, ele é a personificação do derrotado ou desfavorecido: do coitado.

Porém, aí reside justamente a força ou relevância da série: Doug Funnie é o arquétipo da inadequação, despropósito, inconveniência – do erro. Sua incompatibilidade elementar é, no final das contas, o símbolo mais extremo de sua inexperiência e despreparo existencial. O que, por sua vez, encaixa-se perfeitamente na ‘fase de vida’ que o personagem representa: a adolescência – o estágio humano definido pela incoerência e dissonância internas. Doug é o absurdo primordial da infância se deparando com a loucura construída e unânime da comunidade. A todo momento nosso protagonista está tendo que aprender por que suas doideiras (isto é, seus pensamentos irremediavelmente individuais) não podem ser usadas ou sequer entendidas pela ‘maluquice-padrão’ tradicional e convencionada (retratada, no desenho, como ‘normalidade’). Em poucas palavras, o moleque encarna o conflito entre o delírio inato e puro da infância com a insanidade habitual e alienada do adulto.

Eu defenderia que a popularidade do desenho “Doug” consiste em sua capacidade de naturalizar as contradições inerentes à adolescência sem recair na rejeição imatura da criança (fantasia) nem na aceitação apática do velho (conformidade). Percebam: Doug Funnie não demonstra nostalgia ou saudades melancólicas a uma época de inocência agora perdida; ele também não apresenta aquela atitude utilitarista e cínica – mais visível em pais jovens e novos empreendedores – de calar a boca, arregaçar as mangas e ‘jogar o jogo’. Não, não; o personagem não adere a nenhum dos polos contrários da puberdade: a saber, chorar pelo fim da infância ou idolatrar o início das práticas e crenças injustificadas e ilógicas do consumidor moderno. Esse adolescente unicamente mostra os desvarios, emoções, vontades e sonhos de alguém confinado entre dois mundos: o da esquisitice privada da criança e o da irreflexão pública do ‘homem-crescido’.

Depois de tantos anos não achei que fosse curtir rever “Doug”. No entanto, após algumas semanas reassistindo seus episódios, lembrei de porque gostava da animação. Não é porque ela é engraçada, bizarra ou alucinada – efetivamente, não é por isso. Eu verdadeiramente me recordei, nesses últimos dias, da razão de me entreter tanto com o desenho. Sabem qual é? “Doug” não subestima o poder de compreensão das crianças e adolescentes. Ele, de fato, ‘fala sua língua’ sem apelar para seu lado imaturo ou pré-adulto: a série mantém a problemática do desenvolvimento humano até em seu formato discursivo, em seu modo de comunicar – em seu estilo.

Michael Gartrell

Formado em filosofia, hoje levo adiante um doutorado sobre a história da percepção. Escritor e acadêmico voltado para pintura e cinema.

A arte, muitas vezes, é inconsciente da realidade que ela manifesta. Estamos aqui para entender o que ela tornou visível mas se recusa a enxergar.

  michael.gartrell@hotmail.com