Foto de Andre Duílio. (@andy_dcrz). Poeta, amante do afeto líquido. Conhecedor exímio do Céu.
É possível parar o tempo?
Verão. Primeiro de março de dois mil e vinte e quatro.
Boa Vista. Roraima. 36°.
Aeroporto Atlas Brasil Cantanhede. Aos poucos os passos das botas diminuíam. Os sorrisos nasciam quando os olhares se cruzavam. Aos poucos, os sorrisos, os abraços que se conheciam e que se apresentavam, aumentavam. Dezoito trilheiros ali estavam. Dezoito cargueiras. Um sonho. Um sonho e seus sonhadores. Um destino.
Dois de março. Cidade de Pacaraima, ainda Brasil. As expectativas, por mais que estivessem sendo devidamente acalentadas, era inevitável não serem notadas. Alegria. Apreensão. Curiosidade. Ansiedade. Expectativas. Corpos que ansiavam por chão. Almas que esperavam tocar o céu. Afinal, o tão esperado dia estava tão próximo. Cada vez mais perto. Roraima, ainda uma tela em branco. Singularidades prontas para o colorirem dentro de si. Como crianças prestes a desembrulhar a grande surpresa. Roraima chama. Tínhamos escutado.
Já estávamos vivenciando detalhes da esperada experiência através das mãos que preparavam nossos alimentos, a língua nos trazendo notícias do mundo de lá. O cheiro, a textura, a temperatura já nos acolhiam. Roraima se aproximava. Mas, por dentro de nós.
É mesmo possível parar o tempo?
Três de março. Fronteira cruzada. Santa Elena de Uairén, Venezuela.
Pro céu se assumir ao subir… A poesia de Bernardo do Espinhaço cantava e ressoava dentro de mim. Percorria as entranhas. Sacudia por dentro. Como um vento que estávamos prestes a conhecer…
Oito horas da manhã. O som de um cantarolar festivo se fazia ouvido. A alegria era notável. O peito aberto e desperto. Cargueiras sendo revisitadas, reorganizadas. Assim, seguimos. Três 4X4 rodavam na estrada. Levavam consigo dezoito corações que ansiavam ser atravessados. Vidas que precisavam parar. Parar e olhar. Olhar e sentir. Sentir e ser com. Deixar Roraima entrar e percorrer nossos eus e os mundos do lado de dentro. Que desejavam experenciar Tepuy Roröimo em sua essência. Tocar história. Cheirar a poesia de cerca de dois bilhões de anos. Marcado pelo vento, pela chuva e por povos que ali habitavam. Ante de tudo…
Onze horas da manhã. Comunidade Pemón Taurepáng. Nossos olhos o avistaram. Ali, distante e diante de nós. Ainda pequeno. Imenso dentro de cada um.
Cargueira nas costas. Ajustes. Pés no chão. Olhos brilhando. Coração celebrando. Passos se iniciam. Sem talvez. Prestes a deixar a vida trilhar. Afinal, a vida é um movimento autoral.
Trilhar é experenciar.
Trilhar é se experimentar.
Experimentar é observar.
Observar é se entregar.
Se entregar é permitir ser atravessado.
Ser atravessado é ter a oportunidade de ter seu horizonte ampliado. Para caber mais mundo…
Conforme os passos eram dados o tempo chronos, o que conta, o qual marca e demarca, aos poucos, era esquecido. Desnecessário. Ali, o convite era para sermos um com cada gota de chuva, cada grau que se apresentava, cada raio sentido, cada centímetro pisado. Apreciarmos a horizontalidade. Fazer parte do que já somos, mas, ensinados e estimulados a não sermos.
A paisagem se apresentava a cada quilômetro conquistado. A chuva nos tocava quando achava necessário. O sol nos aquecia e nos iluminava por dentro sempre que queria.
Histórias sendo contadas. Histórias misturadas a outras histórias. Se tornando a história de todos.
Abraços precisos e precisados. Almas humanas diante e junto de outras almas humanas.
Dois Acampamentos alcançados. Tök e Kukenan. O segundo já aos pés do suntuoso. Inenarrável. Potente. Misterioso. Beleza cênica. Lendário.
Os índios Macuxi contam que antigamente, existiam apenas terras baixas e alagadiças, cheias de igapó. AS tribos que viviam naquela área não precisavam disputar comida, pois a caça e a pesca eram fartas. Uma vez, nasceu um belo pé de bananeira. A estranha planta cresceu muito rápido e deu belíssimos e apetitosos frutos.
Os pajés avisaram a todos que aquele vegetal era um ser sagrado e que como tal seus frutos eram proibidos para qualquer pessoa da tribo. Eles disseram ainda que caso alguém desobedecesse a regra e tentasse comer uma fruta daquelas, desgraças terríveis aconteceriam: a caça se tornaria rara, AS frutas secariam e até a terra iria tomar um formato diferente. Era permitido comer de tudo, menos os frutos da bananeira sagrada.
Todos passaram a temer e a respeitar as ordens dos pajés. Mas houve um dia em que, ao amanhecer, todos correram para ver com espanto a primeira desgraça de muitas que ainda estavam por vir: um cacho da bananeira havia sido decepado. Todos se perguntavam, mas ninguém sabia dizer quem poderia ter feito aquilo. Antes que tivessem tempo para descobrir o culpado, a previsão dos mais velhos começou a acontecer.
A terra começou a se mover e os céus tremiam em trovões. Todos os animais, da terra ou do céu, bateram em retirada. Um dilúvio começou a despencar e um enorme monte começou a brotar rasgando aquelas alagadas terras. E foi assim que nasceu o Monte Roraima.
É por tudo isso que, até os dias de hoje, acredita-se que o monte Roraima chora quando de suas pedras caem pequenas gotas de água cristalina.
Foto: Eduardo Veloso (@velosodudu). Olhos observadores que exalam mistério, poesia e sonhos.
Olhares que se cruzavam e assim, nos encorajavam:
-Tranquila. Sobre tranquila. De “poco a poco”. Olhe entorno.
Assim, ouvimos incontáveis vezes. Ia se tornando verdade. A cada palavra germinada.
Horas, passos, horas, suores que se misturavam, pulmões se adaptando ao ar puro.
-Levante os olhos, pode pedir permissão para entrar.
Olho ao lado. Para cima. Ali estava. Junto. Ouso esticar o braço. As lágrimas descem. O coração descompassa. Toco-O. Sinto a permissão para poder percorrer a última etapa. A mais difícil.
Um portal envolto a pedras esculpidas pelo tempo. Tempo que tinha ficado lá na partida. Já éramos um com.
Alcançar o topo foi transpor limites. Pedras escalaminhadas com respeito. Tepuy Roröimo nos recebe com sua chuva e com suas estações que brincam entre si.
Lá estávamos. No lar de Makunaima.
Os índios ingarikós que vivem na região do Monte Roraima creditam o surgimento da montanha a Macunaíma.
Segundo a lenda, no local onde hoje está o monte havia uma árvore gigantesca com todos os tipos de frutos conhecidos. Por preguiça, Macunaíma teria cortado a árvore para pegar os frutos com mais facilidade. Em seu lugar, teria ficado apenas o tronco.
A lenda é contada até hoje nas aldeias ao redor do monte. De acordo com ele, depois de cortada, a árvore caiu na Guiana Inglesa, o que explicaria a floresta densa do outro lado da fronteira, em contraste com a região de campos do lado brasileiro.
O surgimento das cachoeiras do monte, como a das Lágrimas, de 2.800 metros, e de lagos, como o das Andorinhas, são o “choro da natureza pelo crime de Macunaíma”. Depois de ter cortado a árvore, Macunaíma teria desaparecido
Foto de Eduardo Veloso
Lugar em que o tempo parou. Momentos em que os olhos viram e os ouvidos ouviram, o som do mundo.
Olhar o mundo lá de cima e ainda procurar palavras que o descrevam, tem sido em vão.
Terminar esta narrativa?
Impossível.
Ainda estamos lá.
Somos um com Tepuyo Roröimo.
Estar plenamente consciente da existência, espacialidade e temporalidade, ser capaz de se desconectar dos ruídos que o cotidiano impõe e se lançar para o abismo do desconhecido. Neste conjunto de descrições Heidegger retoma de certa forma o mesmo sentimento descrito por Pascal “Le silence éternel de ces espaces infinis m’effraie” (PASCAL, 1963, p. 528), transpondo o sentimento de apavoramento descrito pelo filósofo francês do século XVII pelo sentimento de angústia (ou medo). Ultrapassando apenas a constatação, Heidegger sugere que a busca pela verdade não seja estática e contemplativa, seja antes uma ação de ir para a vivência do Nada. Assim, experimente sua totalidade. O particípio presente do verbo ser. Compreenda seu ser em sua existência e suas possibilidades.
Foto de Eduardo Veloso. Sendo um com Monte Roraima.