No último 22 de novembro, a artista visual Ella Vieira, se tornou a primeira pessoa trans a receber o Prêmio Flavio Gagliardi de Arte com o trabalho “G-3 Habiteto”, no Museu Histórico Sorocabano (MHS). A obra integra a mostra que está aberta ao público para visitação até o dia 05 de janeiro de 2025, no próprio MHS.
Realizado pela Prefeitura de Sorocaba, o prêmio, criado em 1987 para fomentar a produção artística da cidade, adquire uma nova relevância ao incluir “G-3 Habiteto” em seu acervo. Isso porque a obra reúne um mosaico de memórias que denuncia as cicatrizes de um processo de remoção forçada. Composta por azulejos resgatados dos escombros da extinta comunidade G-3, na extrema zona norte de Sorocaba, a instalação transcende a estética para se tornar uma narrativa visual de luta e pertencimento.
A comunidade G-3 foi demolida sob a promessa de moradias dignas, nunca cumprida. Suas famílias, destituídas de seus lares, enfrentaram o apagamento físico e simbólico de suas histórias.
Por meio da técnica de sublimação sobre o azulejo, Ella Vieira reconstrói fragmentos do território apagado, transformando destroços em uma peça emblemática. No coração da obra, uma figura com um manto, mostrada de costas, contempla a paisagem da antiga comunidade. Essa escolha visual, que evita mostrar o rosto da personagem, carrega uma intenção profunda.
“Essa abordagem cria um elo, pois a personagem atua como uma mediadora, convidando-nos a entrar na obra e a compartilhar a mesma visão que ela tem diante de si mesma, ao evitar mostrar o rosto e, consequentemente, as emoções explícitas da figura”, explica Ella.
A ausência de um rosto visível, segundo a autora, transforma a figura em um espelho. Isto é, ao observar a vastidão diante dela, o público pode projetar seus próprios dilemas, anseios e emoções na cena. Como um diálogo íntimo entre o espectador e a obra, que não apenas narra uma história coletiva, mas também provoca reflexões individuais sobre pertencimento, perda e identidade.
De acordo com a autora da obra, o ato de resgatar esses fragmentos dos escombros da antiga comunidade G-3 não é apenas uma ação física, mas também simbólica, pois cada pedaço de azulejo é um vestígio de uma história interrompida, uma moradia desfeita, uma vida deslocada. Ao recolhê-los, Ella transforma esses restos materiais em portadores de lembranças, dando a eles uma nova função: resistir ao esquecimento.
Os pregos que fixam esses pedaços de azulejo na parede ecoam a precariedade do cotidiano, a necessidade de improviso e sobrevivência em meio à instabilidade. Cada azulejo é um pedaço de um lar, e ao reconstituí-los, Ella destaca que mesmo o que é destruído pode ser recriado, e que a memória, embora fragmentada, ainda pode encontrar seu lugar na história.
A exposição é gratuita e pode ser conferida até o dia 05 de janeiro de 2025, no Museu Histórico Sorocabano, localizado na Rua Theodoro Kaisel, 883, Vila Hortência, anexo ao Parque Zoológico Municipal “Quinzinho de Barros”. Mais informações no Portal da Prefeitura de Sorocaba ou pelo instagram da artista: @ellavieira_.
O Prêmio Flavio Gagliardi de Arte é realizado pela Prefeitura de Sorocaba, por meio da Secretaria de Cultura (Secult), viabilizada pela Lei Municipal nº 10.989/2014.
Sobre a artista
Ella Vieira é uma artista multidisciplinar cuja pesquisa e a obra explora a psicogeografia, investigando como as cenografias da cidade influenciam no psicológico afetivo do sujeito, recolhendo objetos do cotidiano comum e encontrados ao acaso. Seus trabalhos vão desde instalações, pinturas até esculturas e intervenções, sua produção reflete um olhar crítico e poético sobre as interações entre corpo, cidade e poder.
Gestora da Maloca Centro Cultural, co-fundadora da Feira Beco do Inferno e da ATS (Associação de Transgêneros de Sorocaba), Ella é uma figura central na cena cultural e política da cidade. Sua presença na Trienal de Arte Contemporânea FRESTAS – “O Rio é uma Serpente”, em 2022, a colocou ao lado de grandes nomes da arte brasileira, como Denilson Baniwa e Laura Lima, sendo a primeira artista de Sorocaba a integrar a exposição.