Elos, Fatos & Afagos

26 de junho de 2023

A flecha do meu cavalo.

A rotina te mastiga, o capitalismo te seduz, São Paulo te engole a seco.

Você luta com o ponteiro, com 5 telefonias móveis, com o moço que te corta pelo lado esquerdo.

Tic-tac e se foi o tempo.

Falta uma hora para brincar de boneca com tua menina, 2 horas para o curso de espanhol, 1 para academia, e uma outra para um jantar romântico com massa fresca e cheiro de molho pesto.

Você dorme moída e convence a psicanalista a te atender às 06h da manhã, porque senão “você vai botar fogo no mundo”.

Acorda com a agenda com intervalos mínimos e faz morada na culpa pela sorrateira paulada de “insuficiência”.

Mas, deixa eu te contar um negócio, eu criei um manual próprio de sobrevivência.

Meu almoço vira visita no museu de arte, meu desespero por atravessar o trânsito paulistano para uma reunião às 07h da manhã tem como prêmio uma cafeteria cool no fim de tarde.

E, quando brincar com o ponteiro é missão impossível, deixo Bethânia cantar as horas. Acendo um incenso, crio minha sobrevivência meio a 5 prazos, 5 reuniões e a impossibilidade de fazer 1 dia durar 48 horas.

Faço brotar magia no caos e consumo até o último talo.

Em oposição ao coração anunciando seu desatino, me apaixono por um varal com vista para o mar em Sicília, pelos lances de luz do sol de outono, pelo amor de Roberto e Rita, pelo cheiro de manjericão da horta, pela lua minguante que parece um riso timidamente apaixonado na minha janela.

Acho que no fundo, adoecemos porque nesse maremoto da vida, a gente se esquece de encontrar paixão.

E, ao menos para mim, apaixonar-se é condição de existência.

Não sei se é a flecha do meu cavalo, a astrologia que dita as regras do meu ser sagitariano, mas como quem se apaixona, necessito despertar movimento em tudo que vejo.

Se esbarro com a apatia de alguém que amo, invento uma noite de luzes verde neon em algum bar aleatório. Traço um novo roteiro de viagem para um destino com poder mágico de salvar tempos caóticos. Envio três versos que fazem ascender piscas-piscas internos.

É que cara, nesse banquete da vida, tem Gil, cangote com cheirinho de erva, mar-antidoto, pãozinho saindo do forno, arte no muro, alguém se declarando às 2h da manhã após 5 doses de coragem. Tem a moça do 12º andar dançando pelada na cozinha com uma taça de vinho na mão, tem “eu te amo” sendo pronunciado baixinho no pé do ouvido, um filhote de cachorro com “bafinho de leite” lambendo as dores de alguém, um beijo roubado no meio de uma gargalhada, um olhar com uma câmara na mão eternizando o exato momento que a covinha da Júlia abre uma espécie de portal para dentro. Tem a partícula sonora do riso de um bebê e seus efeitos mágicos, tem Caetano cantando samba de verão enquanto o avião desembarca em Santos Dumont. Tem as cores brincando no pelourinho, um coração que come a vida e mais uma poção de outras coisas para viver em estado constante de paixão.

Então, por que não se entregar a flecha?

Fernanda Padilha

Advogada, professora, especialista em Direito de Família e Sucessões e Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Buenos Aires, Argentina.

Escritora do Projeto Cultural Útero (Projeto aprovado pela Administração Pública Municipal e que tem como objetivo abordar pautas feministas de forma artística).

Amante da arte e defensora dos emocionados. Acredita no poder desmistificador das palavras e na força revolucionária do afeto.

  fernanda.padilha.ppndadvogados@gmail.com