Ver ou não ver? Filosofia do cinema

27 de outubro de 2023

Assassinos da Lua das Flores

Antes de tudo, eu preciso elogiar a calma e comedimento de Scorcese ao contar essa estória. Um diretor mais novo e inexperiente, ao perceber que seu filme já passou da marca de duas horas e meia, provavelmente apressaria e atropelaria os eventos restantes para terminar seu longa-metragem de da forma mais rápida possível. O “Assassinos da Lua das Flores” não faz isso. Seu terceiro ato, que começa por volta dos 140, 150 minutos, desenvolve-se com a mesma cautela e serenidade que os primeiros dois. Não há afobação; não há nenhum senso de urgência. Tenho que reconhecer a maestria desse artista aqui: ele sabe exatamente o que precisa acontecer e o tempo necessário para que essas coisas ocorram. Leva muita coragem fazer cenas contemplativas, realmente longas, depois de três horas corridas. Para não falar do talento exigido para que essas meditações funcionem a essa altura da película. Enfim, é uma peça incrível.

Agora, para as reflexões propriamente filosóficas. “Assassinos da Lua das Flores” propaga um mito romântico frequente em filmes do séc. XX: que o mal – dado um tempo determinado – elimina a si mesmo ou se “autoaniquila”. Essa ideia já existia em Shakespeare (cf. Macbeth ou Hamlet) e irrompe nos lugares menos esperados (Frodo e Gollum só destroem o anel de poder porque estão brigando por ele – não por que querem fazer o bem). Tal concepção baseia-se no argumento de que a maldade é internamente carente ou falha. Uma coisa boa é perfeita, completa; algo ruim tem alguma ausência, um vazio inerente. E é essa ‘nada’ dentro do mal que explica seus efeitos. A pessoa cruel age desse jeito porque ela está desprovida, destituída de certos valores ou sentimentos humanos – essa é a versão mais trivial desse tipo de raciocínio. Para ser bom, um indivíduo, grupo ou povo precisa ser pleno, farto, abundante ­– isto é, bem-nutrido, rico. Uma civilização com escassez, fome, miséria está mais propensa a cultivar o mal. Eis a lógica tosca dessa posição metafísica.

Enfim, os “assassinos” desse filme reforçam essa tese antiga. Porém, sua inovação é mostrar onde a maldade pode se esconder. Estamos acostumados a ver o mal, justamente por causa dessa teoria, onde não há abundância, riqueza. Entretanto, – e é isso o que o Scorcese revela em quase todas as suas obras – ele, muitas vezes, se oculta nos lugares mais altos, privilegiados da sociedade. Não esperaríamos encontrar a escassez e a miséria na elite americana, não é verdade? Contudo, é precisamente aí que esse diretor vai procurar a pobreza, insuficiência – a mesquinhez. É lá que ele descobre os mais severos casos de “desumanidade”.Mas, espera aí? Como que o abundante, a elite, pode ser “pobre”? A resposta de Scorcese parece ser: “Tem maldades que são tão vazias, tão ocas, que nenhuma quantia de riqueza consegue preenchê-las”. Michael Gartrell                2023

Michael Gartrell

Formado em filosofia, hoje levo adiante um doutorado sobre a história da percepção. Escritor e acadêmico voltado para pintura e cinema.

A arte, muitas vezes, é inconsciente da realidade que ela manifesta. Estamos aqui para entender o que ela tornou visível mas se recusa a enxergar.

  michael.gartrell@hotmail.com