AFETadOS

9 de agosto de 2022

Eros uma vez…

@yuvalrob

Madrugadas têm disso.

Tem silêncio. 

Tem histórias.

Por dentro, muitas vezes, mente barulhenta. 

Nesta, meu corpo me chamou para vaguear. Andei pela casa tentando compreender o chamamento. Passos lentos e silenciosos ao som da playlist de Addis Buchanan. Ela embalaria as próximas horas gélidas, os momentos notívagos e as lembranças que me aqueceriam…

Cenário propício para uma quinta invernal.

Me lembrei do último encontro, o dia em que resolvi olhar para trás mais uma vez, ler o passado. Já havia se passados dois anos!

Após a breve procura, lá estava ela, no fundo da gaveta, a minha quase caixa de Pandora. Rica em linhas choradas, fotos que extraem sentimentos que beiram a convulsão da alma. Pertences do avô que com sua máquina Super 8 filmou meus primeiros passos, cartões de felicitações aos meus quinze anos, o primeiros dentes caídos dos meus filhos que não deixei a Fada levar e mais fotos, as mesmas que quando olhadas me olham de volta. Aquelas que me perguntam tanto. Algumas eu já consegui responder, outras ainda esperam.

Uma antiga lata de biscoitos marcada pelos seus cinquenta anos de vivências, herdadas da matriarca brava, cheia de vontades e sonhos, creio que muitos deles não vividos. Talvez estejam ainda ali, presos.

A primeira hora me proporcionou sentimentos que ultrapassaram uma linha tênue; êxtase. As próximas, seriam embaladas pelo movimento interno causado pelo bilhete encontrado e o qual fora endereçado a mim, o sem remetente, colocado debaixo da porta do meu quarto numa madrugada após a esperada serenata dos acampamentos de verão:

– Meu coração por você não bate, capota!

Sim. Dizeres secretos escritos com caneta azul em traços imprecisos. Eram sintomas da paixão! Como um carro desgovernado em alta velocidade, sem revisão e talvez com os documentos prestes a vencer.

A palavra “paixão” deriva do termo páthos, no grego, significa afeto, sofrimento; paixão. 

Palavra que ao ser s o l e t r a d a, ganha espaço, significado do laço desajeitado, aquele com jeitinho de cada um. Podemos assim dizer, de uma loucura personalizada.

A paixão não quer, nem sequer saber dos limites, da borda, de regras e muito menos da solidão.

A conhecida sensação do encontro perfeito, o laço que quiçá nunca será desfeito, a confecção de um outro desejado e por muitos, esperado.

A pessoa que nos tiraria de nossa condição de faltantes, a “tampa da panela”, “a cara-metade”, tal como vimos no Texto “Ah, mor” sobre o mito de Aristófanes. 

A paixão cheira exagero e tem som de fogos de artifício. Tece tramas quase impossíveis às linhas reais do cotidiano. Ela tem aversão ao meio-termo, ao mais ou menos e qualquer coisa. É intensa, extensa, grita ao vento músicas que dizem o que queríamos dizer e não sabemos como e assim, as emprestamos para serem chamadas de nossas, as quais posteriormente serão dedicadas e cantadas como trilha sonora da possível (se for sustentada) relação e, assim poder descobrir o que acontece após o  “felizes para sempre”.

Mas, a realidade nos convoca a continuarmos seguindo a estrada e à medida que vamos avançando, pneus furam, o motor superaquece, trocas de óleo e revisão são necessárias. Vamos constatando que a estrada é real, o outro é real. Separado de mim. Diferente de mim. De um, vão se fazendo dois. E o apaixonamento tem seus dias contados…

O outro vai dando notícias de seu mundo particular e não para de se tornar diante dos nossos olhos realmente quem é e, algo que é muito importante, como o enxergamos. Como ensina Freud, a realidade que é determinante para nós sempre é a psíquica, como o que acontece nos chega.

Tudo pronto para o possível acidente. Isso, o amor é acidente!

A realidade bate de frente. Por isso, o amor precisa de tempo de estrada, de estada para poder acontecer.

Sobre a caixa?

Não sei quando me chamará novamente. Talvez no próximo inverno, quem sabe.

Quanto ao dono do bilhete?

Percorremos a estrada durante dois anos. Não sustentamos as diferenças. Não suportamos o pós acidente.

Hoje, ele ajuda a salvar vidas de pessoas que lutam contra o câncer. Eu, proporciono e sou ambiente para que pessoas teçam suas próprias vidas. 

Dele, ficam restos. Lembranças do ousado bilhete secreto. Dos acordes dedilhados e dedicados a mim numa madrugada quente de verão. 

Sobre o amor…

Quem se arrisca a pegar a estrada?

Angélica Fontes

Psicanalista Winnicottiana, Educadora e Professora de Psicanálise e aprendiz de Psicologia.