“Divertidamente 2” e seu precursor são, de maneira positiva, mitos alegóricos modernos. Digo isso por causa da forma como suas narrativas se relacionam com o conhecimento ou a ciência contemporânea. Deixe-me dar um exemplo.
“Era uma vez uma ninfa oceânica que gostava de flutuar nas ondas para se bronzear. Um dia, ela adormeceu enquanto flutuava na água e acabou se queimando de sol. Enquanto ela chorava de dor e arrependimento, o deus da luz desceu até ela. Vendo-a em tal angústia, ele se ofereceu para levá-la aos céus, onde poderia aliviar e curá-la. Ela aceitou rapidamente e subiram. No entanto, enquanto voavam para cima, ela começou a sentir cada vez mais frio. Na verdade, ela começou a ficar tão fria que congelou antes de alcançar a morada do deus da luz. Sem saber o que fazer, ele a deixou onde estava e correu desesperadamente para pedir ajuda aos seus irmãos e irmãs divinos. Assim, com sua energia e calor, eles conseguiram descongelá-la e enviá-la de volta à Terra. Mas algo mudou nela: a ninfa agora tinha medo do oceano e começou a flutuar somente em rios e lagos. Fim.”
Esse é um pseudo-mito que ilustra perfeitamente minha afirmação anterior. Esta narrativa descreve alegoricamente o ciclo da água em nosso planeta. Em termos científicos, a água dos oceanos é aquecida (“se queima de sol”) pelos raios de luz e evapora (“voam para cima”). Lá, ela condensa (“sente frio”) e forma nuvens (“congela”). Depois de um tempo, o calor e a radiação do sol (os “irmãos e irmãs” do deus da luz) liquefazem a nuvem e fazem chover (“enviam a ninfa de volta à Terra”). Mas a água que cai é diferente da água marinha (algo “mudou nela” e agora ela tem “medo do oceano”): a água do mar é salgada, enquanto os rios e lagos são de água doce (os únicos lugares onde ela “flutua agora’).
Há uma teoria que sustenta que os mitos são explicações metafóricas de fenômenos naturais ou eventos históricos. Esse pseudo-mito faz isso de maneira transparente. E “Divertidamente 2” faz o mesmo.
Este filme é uma alegoria ou mito para conceitos psicanalíticos usados na compreensão do desenvolvimento infantil. Quase todos os personagens, objetos e ações no filme correspondem a uma estrutura, noção ou operação psicológica. A própria protagonista é a personificação da emoção “felicidade”: seu nome é – sem surpresa – “Alegria”. Na verdade, todos os seus amigos ou colegas são sensações também: “Tristeza”, “Inveja”, “Medo”, “Raiva”, etc.
A trama desta sequência pode ser resumida da seguinte forma: à medida que Riley (a garota cujas emoções seguimos) cresce e chega à adolescência, um novo conjunto de sentimentos surge. E é um deles, “Ansiedade”, que toma o controle dos outros e tenta mudar profundamente quem Riley é.
Freqüentemente, ignoramos por que as pessoas são diferentes ou pensam de maneiras que nos parecem estranhas. É natural tentarmos raciocinar com elas – como se fosse uma questão de esclarecer um ponto ou argumento que as faria concordar conosco. “Divertidamente 2” mostra brilhantemente como somos complexos. Faz isso revelando vividamente como a frequência e a intensidade das sensações definem quem somos. Portanto, da próxima vez que você se encontrar murmurando: “Essa pessoa é muito estranha” ou “Ele é um verdadeiro idiota”, diga a si mesmo: talvez ele simplesmente não tenha aquele sentimento. Ou, talvez, ela confunda medo com o que sinto como curiosidade. E até: ele só sente raiva e vergonha quando outras pessoas experimentam amor e amizade.
Em suma, é muito possível que não seja a forma como as pessoas pensam que seja diferente – é como elas sentem. Como você lida com amigos, colegas de trabalho emocionalmente daltônicos ou amputados? Não é hora de a sociedade começar a focar na educação sentimental? Em uma espécie de cultivação perceptual?
Você acha que você sente o mundo corretamente?
Michael Gartrell – 2024