Elos, Fatos & Afagos

18 de junho de 2024

É crime ser mulher no Brasil.

Eu queria fazer poesia e falar de amor, mas sou mulher, MÃE, e vivo no Brasil.

Segundo o último levantamento divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no 1º semestre de 2023, tivemos 34 mil casos de estupro, período que, comparado ao ano anterior, demonstra um crescimento de 14,9%.

Como agravante considerável nesse gráfico, cerca de 74,5% desses casos foram de estupro de vulnerável (vítimas com menos de 14 anos de idade ou incapazes de consentir).

Outros dados relevantes referem-se a uma pesquisa realizada pela DIEST/Ipea, que analisou de forma conjunta os dados da Pesquisa Nacional da Saúde (PNS/IBGE) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan/Ministério da Saúde), e estimou que, no Brasil, ocorram 822 mil casos de estupro por ano (2 POR MINUTO). Desse total, só chegam ao conhecimento da polícia 8,5% e apenas 4,2% são identificados pelo sistema de saúde.

O ponto é que, paralelamente aos dados alarmantes de casos de estupro por minuto, ocupamos a segunda posição no ranking mundial com maior número de ocorrências de abusos e exploração sexual infantil.

Em contrassenso a esses dados, em total desrespeito à mulher e com displicência pelas nossas crianças, surge o Projeto de Lei 1904/24, de autoria do Deputado Federal Sóstenes Cavalcante, do Partido Liberal (PL-RJ).

O PL, em uma única palavra, é um retrocesso. O projeto busca modificar o Código Penal de 1940 para equiparar o aborto realizado após a 22ª semana (em casos de risco para a gestante, gravidez fruto de estupro e gestação de feto anencéfalo) ao homicídio simples. O que também significa que um estuprador pode ter uma pena menor que a vítima de estupro.

Penalizar a mulher e tornar o estuprador pai. É isso que a bancada conservadora tenta, em caráter de urgência e sem a análise pelas comissões e debate necessário sobre o tema.

O Projeto me fez recordar um exemplo prático que foi divulgado na mídia em 2022. Sempre achei que o brasileiro tivesse memória curta, mas acho que a Câmara dos Deputados tem demência.

O caso trata-se de uma menina de 12 anos que foi vítima de estupro e cuja mãe descobriu a gestação tardiamente (na 22ª semana), coincidentemente ou não, no mesmo período que o projeto prevê como limite.

Para melhor compreensão do caso e da temática, incluo as considerações de Caroline Lopes Natal, advogada, doutoranda em Direito Penal na Universidade de Buenos Aires e mãe de MENINA:

[…] “O sistema judiciário, por exemplo, está recheado de magistrados(as) conservadores(as), que deixam de ser operadores de direito para serem operadores de abusos e injustiças, impedindo que as mulheres exerçam seus direitos nos prazos permitidos por lei no caso de aborto por violência sexual.

“Um caso não muito distante aconteceu com uma menina de 11 anos, que, através de sua representante legal, pleiteou pela interrupção da gestação após ter sido vítima de estupro e escutou da juíza palavras como: ‘Quanto tempo você aguentaria ficar com o bebê na sua barriga, para a gente terminar de formar ele?’ ‘Dar os medicamentos para o pulmão dele ficar maduro para fazer essa retirada antecipada do bebê?’ ‘Para outra pessoa cuidar se você não quiser’, e a menina por sua vez responde: ‘Não sei!’ e a magistrada continua: ‘Em vez de deixá-lo morrer, porque já é um bebê, já é uma criança, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando.’

[…] “O tema está em alta, mas não é de hoje que o conservadorismo EXTREMO tem ganhado espaço nos quais não deveria sequer existir. O sistema patriarcal (mascarado de conservadorismo) mostra-se longe de ser abolido; o processo demonstra-se em contínua transformação ao longo da história, visando sempre à repressão feminina. E, mais do que isso, no sistema patriarcal, tudo está antecipadamente previsto: leis, sanções, proibições, tudo está desenhado perfeitamente para que as mulheres sejam controladas, silenciadas e se tornem incapazes de defender seus direitos, decidir sobre suas vidas e reconhecer seus desejos.

O caso citado por Caroline traz uma evidência prática do quanto a nossa sociedade e o judiciário inviabilizam e dificultam o aborto dessas vítimas que, quando identificados até a 22ª semana, não possuem o amparo necessário para que o procedimento seja realizado brevemente.

Ao contrário, a vítima precisa lidar não só com os danos do estupro em seu corpo e psicológico, mas também com a opressão para parir o fruto de um crime. Isso nada mais é que condená-la a uma pena perpétua.

E o Projeto vem para reforçar essa ideia de pena perpétua, mas não só com as algemas da sociedade, como também atrás das grades. Nossos corpos são estuprados e agora, instrumentalizados no Congresso.

Em 1940 nos foi garantido o direito ao aborto legal em hipóteses restritas e excepcionais. 84 anos depois, tempo este em que deveríamos já ter ampliado esses direitos e dado às mulheres a autonomia de decidirem sobre seus próprios úteros, estamos diante de uma bancada conservadora que quer nos impor o seu Deus misógino e seletivamente punitivista.

Mas ainda resistiremos. Algemaram nossos pulsos unidos e então foi possível ouvir o batimento uma da outra. Descobrimos que, por erro de cálculo da extrema direita:

as algemas nos impulsionaram a darmos as mãos.

Fontes:

https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil-registra-34-mil-casos-de-estupro-no-1o-semestre-de-2023/
https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/1694-pbestuprofinal.pdf
https://www.migalhas.com.br/quentes/368253/juiza-e-mp-induzem-menina-de-11-anos-estuprada-a-manter-gestacao

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_autores?idProposicao=2434493

Fernanda Padilha

Advogada, professora, especialista em Direito de Família e Sucessões e Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Buenos Aires, Argentina.

Escritora do Projeto Cultural Útero (Projeto aprovado pela Administração Pública Municipal e que tem como objetivo abordar pautas feministas de forma artística).

Amante da arte e defensora dos emocionados. Acredita no poder desmistificador das palavras e na força revolucionária do afeto.

  fernanda.padilha.ppndadvogados@gmail.com