AFETadOS

21 de julho de 2022

Que Corpo é esse?

@yuvalrob

Não se ofenda com o meu canto

Não se afete com o afeto

Não calarei meu gemido

Pro pudor dos teus ouvidos

Phoda, Mulamba.

De um lado um poder, de outro um corpo lutando para poder acontecer. 

Ela chegou, sem hesitar sentou à mesa. Calada. A barista que a conhecia, reconheceu seu semblante atônito. Sabia que nesta ocasião aquele corpo necessitava de algo que o acolhesse. O silêncio permaneceu por um tempo.

Após o segundo gole de café, uma respiração longa. Profunda. Parecia buscar forças. Soou como um esbravejar. Só que este, posso dizer que beirou o silêncio. 

– Que corpo é esse?

Ao terceiro gole de café, aquela estudante de História volta ao tempo em dizeres perplexos e externando historicidades que escapavam de sua boca em tons de indignação e desalento. Relata que em meados de 1513, quando João Ramalho naufraga na região de São Vicente, Tibiriçá, o cacique o casa com Bartira, sua filha. A partir deste contrato, nasce um laço social, uma perspicaz integração dos jesuítas à fundação de São Paulo. 

Um corpo.

Um corpo de uma mulher.

Um corpo de uma mulher no sistema.

Um corpo de uma mulher no sistema, silenciado.

E assim, por meio de contratos, até o século XV, se dão as alianças políticas. Depois disto, quando outras questões entram em jogo, a situação se complica.

Ao quarto gole, ainda citando inúmeras devastações, se lembra de Maria Teresa, imperatriz da Áustria, que dizia: “Mais vale uma moça que chora do que um reino devastado”. 

De um lado lágrimas, fluidos femininos por excelência, assim como o sangue. Do outro lado, o poder.

Provavelmente, deve ter acontecido o mesmo com Bartira, a filha do cacique. Se ela chorou, não se sabe…

           As solidões dos corpos femininos estão escancarados nos noticiários. Corpos objetos abjetos de uma sociedade engendrada por uma ideia moral. Pátria de corpos dominados.

Corpos anestesiados.

Corpos idiomas.

Que pulsam. Ocupam. Repulsam. Reagem. Afetam. Reverberam. Ecoam. Ressoam. Versam. Esperam…

Que a má gramática nos põe entre pausas, entre vírgulas e faz de nós sujeitos simples. *

Corpos desejados. Desrespeitados. Verbos intransitivos. Temidos. Adorados. Desde sempre, em toda parte, fonte de tabus, temores, terrores e ritos, que apavoram. O desconhecido.

        Que corpos têm sido estes?

         O quinto gole não acontece. Fica um resto, amargo.

         Aqui, por enquanto, é tudo ainda. *

*Frases da música Sintaxe à vontade, de Fernando Anitelli.

Dica de Leitura

O segundo sexo

Uma obra de Simone de Beauvoir, audaciosa e referência sobre o feminismo. Analisa, aborda e entrelaça os fatos, os mitos da condição psicológica, social e política da mulher  para revelar os desequilíbrios de poder entre os gêneros e a posição que as mulheres ocupam na sociedade e no mundo e, principalmente, os caminhos para a construção de uma libertação. Essencial.

Angélica Fontes

Psicanalista Winnicottiana, Educadora e Professora de Psicanálise e aprendiz de Psicologia.