AFETadOS

29 de agosto de 2022

Ainda há tempo?

@tutehumor

Naquele instante o olhou d e t a l h a d a m e n t e, percorreu todas as linhas que o inscreviam, até que a levaram ao seu olhar.

Há quanto tempo não o olhava?

Principalmente nos olhos. Dentro. Fundo. No lugar cheio de histórias. Agora, não tão vívidos como da última vez. Aquela vez que não se lembrava ao certo, quando, como e o porquê.

Marcas.

Marcas de uma manhã.

Abriu-se naquele espaço de tempo, dentro do minuto oportuno, relembramentos dos momentos de antigamente…

– Vamos, você consegue! Pedale sem parar. Não olhe para trás. Confie em você. aqui. 

Assim, quando percebeu já estava distante. O procurou. E ele estava lá, sorrindo, tão pequenininho. Tão grande para ela. Tinha conseguido, se equilibrou naquela engenhoca adaptada sob duas rodas, criadas por aquelas mesmas mãos, agora com marcas. Ele tinha razão. Ela foi capaz. E ele, sempre ali.

Enquanto o olhava mais um pouco, foi assaltada pela lembrança das tardes de domingo:

– Vamos, você começa! Fale todos os nomes que conhece iniciados com a letra A. Vence quem disser mais.

Lembrou-se que nunca haviam passado da letra D, sempre eram visitados pelo cansaço. Era difícil vencer. Ele sabia tantos nomes. Ele sabia na verdade, tanto.

Seriam as marcas troféus dados pelo tempo, por tanto conhecer, percorrer e por todo o fazer?

Enquanto observava seus movimentos, mais uma lembrança. Desta vez sua memória a levou para as noites frias, quando todos os dias ele a cobria antes do anoitecer.

Lembrou-se dos cheiros das manhãs, dos ovos mexidos, dos pães amolecidos e do tanto, o tanto sem tamanho exato, mas, o dedicado.

Marcas de uma infância.

E assim, em seus pensamentos, percorreu tantos caminhos. Muitos, quando ela percebeu, se viu sorrindo. Outros, nem tanto.

Ele sustentou o ambiente para que ela pudesse vir a ser. Acontecer. Dele, também vieram os nãos, tão necessários, posteriormente e por muitas vezes odiados. Foi seu segundo amor, que com sabedoria a deixou *.O qual, das fantasias, mostrou fatos.

 E todos aqueles lembrados atos estavam ali, contidos, vívidos, bem na sua frente.

Como marcas. Mapas de uma condução. Sábia, sabida. Querida. Jamais preteridas. Nunca, jamais esquecidas.

As tuas mãos têm grossas veias

como cordas azuis

sobre um fundo de manchas

já da cor da terra

— como são belas as tuas mãos

pelo quanto lidaram, acariciaram

ou fremiram da nobre cólera dos justos…

Porque há nas tuas mãos, meu velho pai,

essa beleza que se chama simplesmente vida.

E, ao entardecer, quando elas repousam

nos braços da tua cadeira predileta,

uma luz parece vir de dentro delas…

Virá dessa chama que pouco a pouco,

longamente, vieste alimentando

na terrível solidão do mundo,

como quem junta uns gravetos

e tenta acendê-los contra o vento?

Ah, como os fizeste arder, fulgir,

com o milagre das tuas mãos!

E é, ainda, a vida que transfigura

as tuas mãos nodosas…

essa chama de vida —

que transcende a própria vida…

e que os Anjos, um dia,

chamarão de alma.

As mãos do meu pai, Mario Quintana.

Ainda há tempo?

Dedicado aos quais sobre nós desempenharam a função de sustentadores de ambiente. Aos quais nos mostraram o mundo e quase o todo e o tudo que nele há. Aos quais são, foram e nunca se foram de dentro de nós.

*referência ao Complexo Edipiano sob o olhar de Donald Woods Winnicott. Pediatra e Psicanalista inglês. Sua teoria está pautada nas relações entre a criança desde seu nascimento e o ambiente no qual está inserida, correspondente a quem desempenha a função do cuidar, diretamente. Defende que todos têm a tendência inata ao amadurecimento, desde que recebam cuidados e suportes ambientais suficientemente bons.

Angélica Fontes

Psicanalista Winnicottiana, Educadora e Professora de Psicanálise e aprendiz de Psicologia.