Retrato de uma Jovem em Chamas (2019)

[Escolha do autor]

A cada um, dois meses, eu selecionarei um filme que não está em cartaz no cinema ou na fase de lançamento em plataforma de streaming. Hoje, então, opto por analisar o longa-metragem francês, “Retrato de uma Jovem em Chamas” (Portrait de la jeune fille en feu).

Essa obra é um estudo paciente e cuidadoso do ‘olhar feminino’. É difícil, nos dias atuais, fazer uma análise da mulher ou um aspecto da condição matriarcal sendo homem. Vivemos em uma época onde as meninas e senhoras têm que definir o que é feminal – não seu sexo oposto. Logo, como estou aqui para examinar filmes, vou me limitar a elucidar o que essa peça diz sobre a experiência da visão mulheril, da percepção damesca (ou, em último caso, lésbica). Avancemos, então, e me perdoem por qualquer má-interpretação (tentarei ser o mais neutro possível em meu diagnóstico.)

“Retrato de uma Jovem em Chamas” procura revelar o que é revelar para uma mulher. Geralmente, em produções cinemáticas, a ocularidade é pressuposta ou aceita como um dado bruto, irrefletido e impossível de negar ou contornar. Todavia, em Portrait, a própria visibilidade é colocada em suspenso, apresentada como uma barreira e, muitas vezes, uma ação condenável. Vemos cenas nessa narrativa que expõem o corpo fêmeo, seja para manifestar a naturalidade de sua nudez, seja para justificar a dignidade necessária do aborto. Garotas estão constantemente observando outras garotas, aprendendo suas reações espontâneas faciais, seus gestos involuntários, instintivos, suas opiniões sobre o que é amor. 

A premissa da estória é simples: uma artista é contratada para pintar o retrato de uma ‘jovem moça’ (a jeune fille, do título) sem que ela saiba. O quadro será dado para seu noivo, um homem que não conhece e tampouco quer para si. Por isso todo o sigilo: ela não pode estar consciente do fato de que a toda hora está posando para uma tela invisível, escondida. – Uma metáfora muito bonita, profunda: o olhar do outro não é sempre uma pintura para a qual não temos acesso? Que aquela pessoa de fora cria sem nunca poder nos mostrar? Uma imagem que a vida inteira buscamos espiar, enxergar, entender? Não desejamos gravemente contemplar aquela figura que o outro ou outra desenhou de nós, em nenhum momento pedindo nosso conselho ou avaliação? Esse longa-metragem, aparentemente, quer indicar que as mulheres são retratistas que nunca poderão exibir as obras de arte que colorem em suas cabeças.

Mas, agora, retornemos ao percurso da ficção. Já no primeiro ato a posante descobre que está sendo dissecada pela pintora. No entanto, ao invés de negar sua reprodução a óleo, aprova a tarefa de sua intérprete e admite sentar diante de sua paleta. – Aí começa, de verdade, o processo de invenção plástica mental. Uma desenhará a outra com tintas que ninguém nunca verá. 

Temos aqui uma tragédia. Há muita beleza nessa estória, mas, também, muita tristeza e lástima. A conclusão é que, talvez, mesmo que a mulher veja quem ama, quase nunca é o bastante. O mundo não é caridoso com os quadros que elas criam.

Michael Gartrell

Formado em filosofia, hoje levo adiante um doutorado sobre a história da percepção. Escritor e acadêmico voltado para pintura e cinema.

A arte, muitas vezes, é inconsciente da realidade que ela manifesta. Estamos aqui para entender o que ela tornou visível mas se recusa a enxergar.

  michael.gartrell@hotmail.com