Elos, Fatos & Afagos

27 de julho de 2023

Viaje.

Essa palavra é usada por mim como um mantra dos conselhos.

Quando o coração de um amigo é partido, eu digo: Viaje. Quando alguém me diz que precisa tomar uma decisão importante na vida e não sabe qual, eu soletro: vi-a-je. Quando alguém perde o emprego e engolido pela ansiedade do “e agora”, eu digo – agora: viaje.

Desde pequena, fui domesticada a esse mantra. Digo domesticada, porque ele era tão usual em casa como arroz com feijão.

O ano inteiro se passava em função da “viagem”. Viagem era uma palavrinha mágica que minha mãe usava para o meu pai toda vez que as coisas ficavam feias no trabalho. “Bem, pensa que final do ano a gente viaja”, “se imagine na estrada rumo ao nordeste”, feche os olhos e se teletransporte para o mar”. Eu não sei como, mas aquilo de alguma forma resolvia.

O dinheiro tinha como finalidade principal nos proporcionar viagens. Eles não faziam questão do carro ano eu nem sempre tive todas as roupas descoladas das minhas amigas, mas uma coisa era certa: janeiro era com 30 dias rumo ao litoral, ou melhor, muitos litorais.

Nada era muito planejado, diziam que era melhor assim. Não alugávamos casa e tínhamos mais o menos a noção do roteiro. Onde o coração “tocava” a gente escolhia como um dos destinos.

Lembro-me de uma viagem em especial. Fomos de carro para Bahia. No carro tocava incansavelmente Emerson Nogueira, um cantor brasileiro que ficou conhecido no exterior pela releitura de alguns clássicos do rock. “On a dark desert highway, cool wind in my hair. Warm smell of colitas rising up through the air”.

Hotel Califórnia ainda guia as memórias da nossa viagem. Junto da sua voz rouca, automaticamente, me lembro da voz da minha mãe: “feche os olhos e tente gravar na mente cada lugar para quando você quiser se teletransportar”. Aprendi a gravar isso com todos os meus sentidos.

Então, meus amigos, lá vai uma receita antiga de família:

Feche os olhos. Escolha seu destino. Conheça, ou melhor, permita-se ser conhecido por ele.

Alugue um carro. Escolha a sua música favorita. Coloque a cabeça para fora como um cão e sinta o vento dar golpes de liberdade. Faça ondinhas com a mão e permita que o ar domine os seus movimentos. Deixar a natureza te guiar as vezes é necessário.

Escolha um hotel simples, mas que a vista te beije no canto da boca, como aquele seu “quase” primeiro ´beijo. A vista é sempre mais importante que o confortável. Lembre-se que, como na vida, as vezes a gente precisa largar não da estrutura para poder amanhecer melhor.

Largue o carro. Saia para caminhar. Escolha um restaurante que tenha uma mesinha na calçada. Eu confesso que tenho uma tendência por restaurantes com toalhinhas vermelhas xadrez, acho elas convidativas e magicamente simpáticas. Sente-se. Peça sua bebida favorita e deixe o garçom escolher seu prato livremente. Antes de comer: cheire. O olfato é sempre o primeiro que come.

Enquanto come, escolha um casal, ou uma alma solitária bebendo seu vinho na mesa do lado. Observe os movimentos, namore os detalhes, invente uma história. Olhe, atentamente o vai e vem de pernas atravessando a rua. Atente-se ao perfil, o sapato, o movimento nada preciso de quem está sempre correndo para chegar em lugar algum. A vida tem outro contexto quando você simplesmente para e assiste.

Levante-se. Sorria para o garçom e deixe suas pernas te guiarem. Temos algo animal ou místico dentro de nós que sabe exatamente onde nos levar. Entregue-se a ele, instintivo ou sobrenatural, não importa, nosso corpo é o melhor guia.

Entre um bar, tome uma birita. Sorria para a moça do lado e arranhe uma língua que não domina. Faça amigos e torne aquela coordenada geográfica em pontos fixos no peito.

Beije na boca todos os segundos. Transe com as horas. Compre um livro na banca local. Coloque uma canga embaixo da árvore e faça amor com o seu trecho favorito.

Deguste do acaso, se assim preferir chamar as escolhas que o teu coração fizer pela trilha. Mas não duvide, nem sequer por um segundo, da mágica do encontro.

E quando duvidar, quando o coração estiver sendo engolido,

Vi-a- je de NOVO.

Fernanda Padilha

Advogada, professora, especialista em Direito de Família e Sucessões e Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Buenos Aires, Argentina.

Escritora do Projeto Cultural Útero (Projeto aprovado pela Administração Pública Municipal e que tem como objetivo abordar pautas feministas de forma artística).

Amante da arte e defensora dos emocionados. Acredita no poder desmistificador das palavras e na força revolucionária do afeto.

  fernanda.padilha.ppndadvogados@gmail.com