Elos, Fatos & Afagos

30 de agosto de 2022

A arte não abrevia

“Eu acho que essa é a função da arte, de fazer fraquejar os joelhos um pouquinho quando é preciso, de tirar a atenção da dor em alguns momentos, outras vezes levar a atenção pra dor que eu acho que é necessário também, muitas vezes andamos distraídos demais e a arte tem essa função de chamar”. – Matilde Campilho. 

Já li muitas definições, mas nenhuma tão “cardíaca” como a de Matilde. Sim, para mim, ela conseguiu chegar no órgão vital.

E a frase da poeta me fez viajar para um lugar nada previsível: um museu Penitenciário.  

No começo do ano, por um motivo alheio a minha vontade, (uma pitada de drama da minha sócia) fui parar em um museu penitenciário no centro do Rio (MPERJ).

Era horário de almoço, os funcionários nos liberaram para um tour “livre” pelas salas sombrias que guardavam fotos, armas e utensílios utilizados para fuga. 

Me recordo que entrei sozinha em uma minibiblioteca que cheirava pó e tinha um livro um tanto chamativo de Karl Abraham (contribuiciones a la teoria de la libido). Passei um tempo ali, sozinha, varrendo com os olhos os livros de psicanálise que mais pareciam um “mapa” do cérebro dos detentos. 

Não demorou muito para eu entrar em uma sala a qual eu já tinha flertado algumas vezes. É que entre as fotos em preto e branco, pó e artefatos que pareciam ter cheiro de sombra, havia uma salinha com cores. Muitas cores.

Era o portal da criação (trabalho terapêutico desenvolvido através da arte, há mais de treze anos pela Instituição). A sala era cheia de portas coloridas pintadas pelos detentos. E, estranhamente, elas conduziam de olhos fechados, como quem dança no meio da sala. Te faziam pensar o porquê daquelas cores, se a cruz perto da maçaneta tinha algum cunho de absolvição, se a pintura do vasinho com flores estava ligada ao afeto e em poucos segundos: você já estava dentro do portal. É que a arte faz isso: te puxa para dentro (de si e do outro).

Eu sempre fico em dúvida se a arte é o instrumento ou o objeto. Ou se ela é a materialização do que se sente.

Acho, na verdade, que a arte não é equação exata. Não se limita a um conceito predefinido.

É um grafite no centro de são Paulo,

Um quadro de Monet

Uma frase bordada na barra de um vestido

O click exato da gota se despedindo da folha

A luz da vela invadindo a taça de vinho

O coração na ponta de uma caneta

A poesia no poste

O primeiro rabisco do teu filho 

A tua lágrima que virou maresia na parede

O beijo dela tatuado no seu pescoço.

A arte não abrevia

Não possui protótipos

Não permite configuração

É território sem lei para o que se sente.

A arte nos salva.

Nota: Click feito por mim em janeiro de 2020, Buenos Aires.  

Fernanda Padilha

Advogada, professora, especialista em Direito de Família e Sucessões e Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Buenos Aires, Argentina.

Escritora do Projeto Cultural Útero (Projeto aprovado pela Administração Pública Municipal e que tem como objetivo abordar pautas feministas de forma artística).

Amante da arte e defensora dos emocionados. Acredita no poder desmistificador das palavras e na força revolucionária do afeto.

  fernanda.padilha.ppndadvogados@gmail.com