Ver ou não ver? Filosofia do cinema

11 de novembro de 2022

Adão Negro

Um mito é uma narrativa sem autor. Não há um único indivíduo responsável por criar o labirinto de Dédalo ou Jasão e os Argonautas. Essas histórias são o resultado de um esforço comunitário, uma empreitada social para contar e recontar certas fantasias, aventuras e tragédias. É por isso que temos tantas versões de mitos, cada uma apresentando um aspecto específico do herói ou deusa enfatizada. Assim, a mitologia é sempre o produto de uma tradição oral que, via de regra, não documenta nem registra os nomes das pessoas que acrescentaram, transformaram, ampliaram, subtraíram e acentuaram partes ou mesmo arcos inteiros de contos e lendas. Prometeu ou a caixa de Pandora foram inventados por toda uma cultura ao longo dos séculos: não há um autor; há milhares. Portanto, você poderia dizer que um mito, de certa forma, é o objeto mais concreto que uma imaginação coletiva inconsciente consegue fabricar. É, em suma, um artefato que manifesta o que uma civilização por gerações e gerações sonhou. Um mito nos mostra os valores de uma tribo ou país, revelando que tipo de personagens e problemas eles querem falar sobre, dia após dia.
Agora, o que é “Adão Negro”? Penso que é um mito, mas não no bom sentido. Black Adam é um vilão que virou super-herói (e que talvez se tornou, agora, um anti-herói?). Esse personagem teve tantas histórias de origem, esteve em tantos conjuntos e sagas, lutou contra tantos amigos-tornados-inimigos e vice-versa que ele poderia ser chamado, creio eu, um mito. No entanto, há uma diferença crucial entre o Adão Negro e os mitos tradicionais. Enquanto os mitos antigos são o produto de décadas e décadas de interação e lapidação social, o Adão Negro é o resultado de anos e anos de reconstrução individual e privada. Esse personagem foi estabelecido por uma dúzia de escritores, mais ou menos, desde a década de 1940, que queriam vender quadrinhos. Seu interesse particular ao escrever esse vilão não reflete nosso imaginário coletivo inconsciente: apenas espelha o dos artistas que concebem suas crônicas, seu mundo.
Meu argumento é que “Adão Negro” – e, consequentemente, quase todos os outros super-heróis modernos – são mitos privados ou pessoais. Obviamente, alguém poderia responder afirmando que o público participa e promove a perpetuação desses tipos de filmes, fundando um ‘coletivo’ que garante a produção e proliferação de filmes da DC e da Marvel. No entanto, eu diria que essa prática comunitária é parcial, unilateral. Os espectadores, de fato, não têm voz para contar esses mitos. Tudo o que eles podem fazer é aprovar ou desaprovar essas obras. Eles não têm outra maneira de co-criar organicamente esses artefatos. Não há como o público espectador somar, transformar, estender, subtrair e acentuar um filme como “Adão Negro”, por exemplo. Você e eu só podemos dizer “sim” ou “não”, comprando ou não ingressos.
– Não é assim que se inventam verdadeiros mitos. E você sentirá isso quando assistir esse filme: você perceberá que está vendo a versão recortada e colada (mitológica) do sonho incompreensível e irrefletido de outra pessoa.

Michael Gartrell

Formado em filosofia, hoje levo adiante um doutorado sobre a história da percepção. Escritor e acadêmico voltado para pintura e cinema.

A arte, muitas vezes, é inconsciente da realidade que ela manifesta. Estamos aqui para entender o que ela tornou visível mas se recusa a enxergar.

  michael.gartrell@hotmail.com