Homem-Aranha: Através do Aranhaverso

Esse filme é bagunça elevada ao nível de arte. Todo criador de estórias sabe que qualquer obra surge do caos, daquele estado de pura desorganização e barulho. O “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso” tenta se manter o mais fiel possível a esse impulso cru e bruto. Parece que toda ideia que brotou na cabeça do roteirista foi diretamente para o papel, sem edição ou alteração. Em literatura nós chamamos isso de ‘fluxo de consciência’; Jackson Pollock dizia que era o ponto frágil entre ‘controle e acaso’. – De qualquer maneira, podemos simplesmente dizer que é a forma mais espontânea, vomitada de inventar algo.

Quando você assistir esse longa-metragem terá uma ideia do que estou falando. Não há nenhuma tentativa de manter um estilo ou coerência plástica: vemos uma sopa de figuras desconexas e abruptas. É o pastiche tornado temática central. Em termos brasileiros, falaríamos que constatamos nessa película a ‘carnavalização do desenho animado’. A mistura de figuras e alegorias diversas, uma fanfarra de máscaras e trajes. – Tudo justificado novamente através do conceito de ‘multiverso’.

Eu já afirmei aqui, há um tempo atrás, que o multiverso é a concretização imagética da ansiedade. A metafísica do universo paralelo é a mitificação do medo da possibilidade. É a legitimação do pensar “E se?”. “Eu casei nessa vida e tive três filhos. Porém, em outro universo, em outro mundo, eu persegui meus sonhos e me tornei um surfista como sempre quis.” – O multiverso é a fábula que contamos para nós mesmos para dar conta de todas as existências desejáveis que, por alguma razão, jogamos fora ou desistimos de realizar. Ele é o mito que nos permite aceitar nossa liberdade cada vez maior e ilimitada – liberdade tão mais amarga por não ser utilizada ou aproveitada. “Nossa, olha a foto do meu amigo no Instagram. Que praia bonita! – E eu aqui no trabalho… Ainda bem que em outro universo, um outro ‘eu’ está em uma praia ainda mais incrível que essa nesse exato momento!…”

O conceito de universo paralelo nos ajuda a tolerar todas as decisões, todas as histórias que não vivemos. Não importa que estamos infelizes ou desconfortáveis com nossa situação atual: uma versão de nós em outra realidade está curtindo por mim.

Enfim, “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso” apresenta a jornada de Miles Morales mais uma vez. No entanto, nessa rodada o problema é outro. Ele vai ter que mostrar que o que nós conhecemos como a ‘biografia do Homem-Aranha’ pode ter outro desfecho. – De novo, a possibilidade como princípio ordenador da narrativa.

Até quando vamos ter super-heróis com crise de ansiedade como elementos centrais de nossos filmes?

Michael Gartrell

Formado em filosofia, hoje levo adiante um doutorado sobre a história da percepção. Escritor e acadêmico voltado para pintura e cinema.

A arte, muitas vezes, é inconsciente da realidade que ela manifesta. Estamos aqui para entender o que ela tornou visível mas se recusa a enxergar.

  michael.gartrell@hotmail.com