Ver ou não ver? Filosofia do cinema

21 de outubro de 2022

            Memória/Sucata

            [Coluna Interdisciplinar: Fotografia]

Ao ver a exposição fotográfica de João Cazzaniga, imediatamente duas perguntas me vieram a cabeça: “Será que só percebemos a ação do tempo, o escorrer da história quando contemplamos a extinção ou degeneração das coisas?”; e, “É possível presenciar, identificar o passado em mundo construído apenas por materiais ‘imperecíveis’?” Ou seja, reformulando minhas questões, em uma cidade feita apenas de aço, vidro, plástico etc., é concebível pensar no antigo, obsoleto, perdido? Como saber a idade de uma vidraça ou de um talher inox bem conservados? Existem vitrais góticos na Europa que foram criados há mais de 700 anos atrás e não apresentam uma mancha, uma fissura. Se cuidarmos zelosamente de nossas panelas, copos e chinelos, de que modo poderemos sentir sua idade? De que forma conseguiremos saber se uma janela tem 2 ou 200 anos?

            Após refletir bastante sobre tais problemas, cheguei em uma indagação ainda mais estranha e preocupante. “Podemos considerar que nossa sociedade, tão fascinada com aço e vidro, queira justamente apagar a passagem do tempo? Que ela queira se esconder ou fugir do colapso, destruição, aniquilamento ao construir objetos que levariam milênios para corroer, estragar?” Notei, nesse momento, que minhas ideias estavam ficando extraordinariamente benjaminianas; porém, mantive meu fluxo de pensamento. – É claro que nossa civilização possui uma relação traumática com a morte e quer a todo custo evitar sua menção e discussão. No entanto, será que esse ‘medo do esquecimento’ se infiltrou a tal ponto em nossa comunidade que ela afeta até nossa arquitetura? Somos capazes de admitir que os shoppings, clínicas odontológicas e arranha-céus da Faria Lima estão contaminadas com um certo terror de perecer? Que esses edifícios tentam negar qualquer marca ou sinal danificante do tempo, da história? Que, talvez, essas obras sejam ‘a-históricas’ – ou, pelo menos, que elas manifestem a tendência à a-historicidade peculiar ao nosso período histórico?

            Não conheço a solução a todos esses dilemas. Contudo, gostei muito de entretê-las por algumas horas. Somente sei que, no final da galeria, estava ponderando a qualidade ou condição de minhas próprias memórias. Quem está apto a dizer se nossas lembranças também não se tornam sucata ao longo dos anos? Aquela experiência de criança, tão pura, limpa, brilhante como plástico – será que ela também não deteriora e apodrece durante nossa vida? Talvez não fique bela justamente porque está desbotada, gasta, quebrada?

            Agradeço ao artista João Cazzaniga por me fazer pensar nessas perguntas tão bonitas.

Michael Gartrell

Formado em filosofia, hoje levo adiante um doutorado sobre a história da percepção. Escritor e acadêmico voltado para pintura e cinema.

A arte, muitas vezes, é inconsciente da realidade que ela manifesta. Estamos aqui para entender o que ela tornou visível mas se recusa a enxergar.

  michael.gartrell@hotmail.com