Ilustração: @tutehumor
desta vez os passos eram rápidos. com pressa. ela chegou ao consultório eufórica, quase não contendo o que continha e a continha. a porta foi quase cúmplice do “vulcão em erupção”. seu corpo se movimentava rápido, um corpo expressado e apressado. seus olhos olhavam para tudo, para o todo. eu a chamo com calma. nada. o interpelar foi mais marcado desta vez. ela para o olhar e me olha atônita. parece que tinha percebido que eu estava ali. respira curtamente. solta o corpo com força e imprecisão. parece que o sofá, agora localizado, estava preparado para recebê-la. ela, fala, fala, fala, palavras desconexas, não sabidas entre si. a falação é cessada por um celular não silenciado. como aquela mente estimulada. o corpo gritado. atravessado. não respeitado. a música entra de repente em alto e bom som:
I’m ‘bout to explode, take off this load
[ ]
Release ya anger, release ya _mind
Release ya job, release the time_
Release ya trade, release the stress
Release the love, forget the rest
You won’t break my soul (You won’t)
Eu vou explodir, tirar essa carga
[ ]
Liberte sua raiva, liberte sua mente
Liberte seu trabalho, liberte seu tempo
Liberte seu negócio, liberte seu estresse
Liberte seu amor, esqueça o resto
Você não vai despedaçar a minha alma (Não vai)
Beyoncé, em sua música “Break my soul” chega declarando um hino à renúncia. O toque escolhido e nunca percebido, pela primeira vez faz sentido. É sentido. Antes que eu pudesse dizer algo, seu olhar se dirige lentamente ao meu. Um antigo olhar que sempre estivera ali a esperando. Seu olhar estava fixo, paralisado. Seu corpo, agora se acomoda com delicadeza, procurando se ajeitar, ter um lugar. Parece que haviam marcado este encontro. Fecha os olhos, inspira como se enchesse a si de si, expira como se algo tivesse sido destrancado e as lágrimas caem.
Foi fechando os olhos, respirando fundo e l e n t a m e n t e, parecendo que a tocava por dentro, que as palavras sãs e agora, consciente, vieram: “Estou tão cansada. Faz tempo que não sinto o tempo. Tempo…”
O silêncio paira.
Nos veríamos na próxima Sessão.
*
A nossa realidade está aí, posta, postada, escancarada. As possibilidades de facilitarmos nosso trabalho e todo movimento diário no mundo online, oportunidades para remirmos o tempo e podermos fazer caber mais tempo nos conclama todos os dias a estarmos fusionados à era do neoliberalismo, ainda mais. Mais ainda. Mais um pouquinho antes de pensarmos que iremos descansar.
Nos parcelamos para ter e a demasia aponta para o quanto não somos. O quanto questões da existência não existem do nosso vocabulário particular. Assim, seguimos. Produzimos mais, não sabendo ao certo para quê, por quê. Quase todo dia. O dia todo.
Aqui deixo, o que escolhi chamar de Poema, palavras do filósofo Byung-Chul Han em seu livro, “Psicopolítica”, para celebrar este nosso ano:
A culpa destrói a liberdade, se não temos dívidas, ou seja, se somos completamente livres, precisamos agir seriamente. Talvez, nos endividemos permanentemente para que não precisemos agir, ou seja, para não sermos livres, para não termos que assumir responsabilidades, as dívidas elevadas não seriam a prova de que ainda não conseguimos ser livres?
Feliz ano novo comum!