Missão: Impossível – Acerto de Contas Parte 1

            Eu ainda acho que filmes de ação desempenham uma função psicanalítica muito importante para a sociedade. Quando vemos esse tipo de longa-metragem, todos nossos impulsos violentos, cruéis, selvagens são desbloqueados e expelidos. Aquelas vontades que no dia-a-dia guardamos ou contemos dentro de nós – aquele desejo de bater naquele motorista, de xingar nosso chefe, de jogar ovo no político que mais detestamos – todas essas disposições brutais que possuímos mas que não podemos liberar em nossa comunidade – todas elas são liberadas no gênero que chamamos ‘ação’.

            Assim, nesse sentido, penso que essa forma de fazer arte demonstra ter um papel muito civilizatório. No fundo, nós somos nada mais que animais domesticados, tornados dóceis através de séculos de castigo e manipulação. Entretanto, todos nossos instintos bestiais, animalescos, ainda existem e prosperam em nós. Infelizmente, não evoluímos ao ponto de extinguir ou destruir esses apetites ‘pré-sociais’, vândalos. Logo, encontramos maneiras de ‘efetivá-los’ que não sejam dolorosos ou desagradáveis para o outro. Fazemos aulas de boxe ou muay thai; jogamos futebol, basquete, rúgbi, vôlei, etc.; corremos ou vamos para a academia; comemos ou bebemos demais; alguns de nós fumam; outros saltam de paraquedas ou escalam montanhas; uns poucos, até hoje, viram policiais ou soldados e procuram transformar esses impulsos mais ‘sanguinários’ em algo benéfico para a sociedade, nos protegendo e auxiliando. – É nessa categoria de atividade que entra, para mim, o ‘filme de ação’.

            A experiência de ver um “Missão Impossível” é a de se esvaziar de todos esses desejos perversos e ‘predatórios’ que herdamos de nossos antepassados. Em uma obra como essa, somos capazes de simular dar porrada ou até matar alguém. Convertemo-nos em assassinos virtuais, homicidas ‘de mentirinha’, para usar um termo coloquial. Aqui percebemos a potência dessa habilidade nossa de nos projetar para dentro da tela do cinema. Nos desfazemos, nos aliviamos de todas essas vontades silvestres que ainda crescem e vivem em nós.

            Talvez um crítico de viés marxista discorde de mim. É possível muito bem que ele diga que o cinema é só mais um modo de nos ‘adestrar’ ou controlar. Que essa espécie de ‘entretenimento’ nos conforta e acalma, deixando-nos cada vez mais amenos a todas as atrocidades reais que ainda acontecem no mundo. Eu entendo esse ponto de vista. Contudo, de verdade, creio que precisamos de um jeito de soltar ou desprender todos esses apetites antissociais agora. Não podemos esperar para o mundo se resolver enquanto temos que lidar com nossos instintos mais primitivos e ‘naturais’.

            Parafraseando o Nietzsche, ‘Somos como os primeiros peixes a saírem da água. Antigamente, nadávamos e flutuávamos com uma leveza indescritível. Porém, agora que subimos sobre essa terra chamada comunidade, sentimos todo o peso de nosso corpo, de nossas necessidades… Somos um peixe fora d’água em sociedade.’

            Por enquanto, ainda defendo que os filmes de ação nos ajudam a adaptar, a transitar de nosso estado animal ao social – ao coletivo.

Michael Gartrell                 2023

Michael Gartrell

Formado em filosofia, hoje levo adiante um doutorado sobre a história da percepção. Escritor e acadêmico voltado para pintura e cinema.

A arte, muitas vezes, é inconsciente da realidade que ela manifesta. Estamos aqui para entender o que ela tornou visível mas se recusa a enxergar.

  michael.gartrell@hotmail.com