Não! Não olhe!

Mais uma vez dispomos de um filme que quer meditar sobre a experiência do ‘olhar’. Entretanto, diferentemente de “Retrato de uma Jovem em Chamas” (2019), essa obra não tenta pensar a visão a partir do prisma da subjetividade feminina ou da amante. O ato de observar é analisado, nesse longa-metragem, com base no predomínio moderno do ‘espetáculo’.

Os romanos antigos tinham como fonte de entretenimento e distração o Coliseu e suas réplicas menores. Nesses anfiteatros, o povo ia para presenciar combates, lutas com animais ou caças (venationes) e execuções (tanto de animais quanto de humanos [geralmente, criminosos]). Os cidadãos, nesses ‘espetáculos’ arcaicos, poderiam liberar todos seus impulsos violentos, assassinos, ao testemunhar a morte de inúmeras pessoas e bestas ao vivo. Era uma época em que o cristianismo ainda não havia proliferado e monopolizado todos nossos sentimentos morais acerca do sofrimento, punição e morte. As pessoas eram livres para deixarem suas vontades mais cruas e grotescas fluírem, sem culpa ou disfarce. Foi um período, para parafrasear Nietzsche, no qual o homem ainda podia ser um ‘bicho agressivo, não-domesticado, sem remorso’.

Porém, esses tempos passaram e, mediante séculos de tortura, castigo e adestramento, viemos a nos tornar morais, bons. Contudo, não é porque temos uma ‘consciência ética’ que nossos instintos primitivos, vândalos, esculpidos e lapidados por milhões e milhões de anos nas oficinas da natureza, vão desaparecer do nada, só porque nós os achamos abomináveis. Não, eles continuam lá, sedentos e inquietos, esperando no escuro de nosso subconsciente qualquer oportunidade para se liberar e concretizar.

Mas, qual é a vazão ou espaço moderno que permite o expurgo dessas forças agressivas paleolíticas? É justamente o cinema. São nos filmes de aventura, ação e, sobretudo, terror que esses desejos selvagens, ferozes, vem à tona e se realizam. Será quando aquele vilão que detestamos, repugnamos, morre estropiado de tiros na nossa frente que vem aquela satisfação brutal, aquele prazer pagão, bárbaro, de causar dor. Não possuímos mais Coliseus onde todos esses instintos amorais escapem de nós, monstruosa e inocentemente. Hoje em dia, é impossível construir esses anfiteatros terríveis e catárticos. Todavia, criamos uma outra arena, um outro palco para batalhas, caças e execuções: chama-se o cinema.

Filmes de aventura, ação e terror são os nossos Coliseus. Vamos ver essas obras para aceitar todos aqueles impulsos que, dentro da sociedade educada, moral, não podem ser efetivados. Esses longas-metragens são o vomitório de todos os xingos e palavrões que não podemos regurgitar na cara das pessoas que execramos; eles servem de palanque de execuções virtual onde matamos todas aqueles que profundamente odiamos.

Em suma, “Não! Não olhe!” está aqui para nos lembrar da função civilizatória dos filmes violentos: eles existem para que nós não precisemos ser. Se “Retrato de uma Jovem em Chamas” reflete sobre o olhar amoroso, apaixonado, essa produção examina as consequências do olhar cruel, sanguinário, sem rancor – feliz. Constatamos aqui um estudo paciente, rigoroso, do subconsciente daquele que contempla um ‘espetáculo moderno’.

Michael Gartrell

Formado em filosofia, hoje levo adiante um doutorado sobre a história da percepção. Escritor e acadêmico voltado para pintura e cinema.

A arte, muitas vezes, é inconsciente da realidade que ela manifesta. Estamos aqui para entender o que ela tornou visível mas se recusa a enxergar.

  michael.gartrell@hotmail.com