AFETadOS

5 de setembro de 2023

Algumas noites, um bacanal

Nos conhecemos há tempo.

Nos encontrávamos com mais frequência em outros tempos.

Tempos idos.

Tempos de outrora.

Tempos em que os sentia me tocando. Passeando por cada canto meu. Encantos. De leve. Suave. Toques precisos.

Enquanto fechava os olhos sentia seus toques. Amenos. Bastava me acalmar e aos poucos muitas sensações tomavam conta daquele nosso momento. Calor. Aconchego. Calmaria. Respirava fundo. Os sentia. 

O torpor me tomava por inteira.

Profundo.

Deleitávamo-lo. 

Momentos únicos.

Intensos.

Desejados.

Agora, encontrá-los? 

Não sempre. Nem tanto. Algo tão raro.

Deixaram saudade.

Tempos que se foram.

Tempos de antes.

Eu quero uma licença de dormir, perdão para descansar horas a fio, sem ao menos sonhar, a leve palha de um pequeno sonho.

Quero o que antes da vida foi o sono profundo das espécies, a graça de um estado.

Semente.

Muito mais que raízes. 

Adélia Prado, “Exausto”.

Atualmente dormir bem dormido, um encontro, aquele encontro marcado, às vezes inesperado com Hipnos e Morfeu, naturalmente, tem sido cada vez mais difícil.

Nosso mundo contemporâneo parece gritar por um descanso.

Estamos comprando sono.

Um terço das pessoas têm suas questões e reclamações quando o assunto está diretamente ligado ao sono, a dormir. Não estamos dormindo bem. Não estamos sendo bons o suficiente de cama!

Nos desligarmos, nos desconectarmos de fato sem o auxílio do consumo de indutores do sono (natural ou artificial) ou álcool, tem sido momentos cada vez mais raros e escassos.

Mas, para onde foram Hipnos e Morfeu?

Chego a pensar que desistiram de nós, humanos. Ou melhor, nós deles.

Temos cedido aos apelos sedutores do mundo contemporâneo. Verdadeiros vigilantes do agora!

Produza, se conecte, busque, pesquise, faça acontecer, você pode, confie, não procrastine, se dedique, trabalhe enquanto eles dormem e muitos outros imperativos impetuosos cada vez mais presentes aos nossos ouvidos, ainda humanos.

Assim, viemos caminhando ao sintoma social e atual: zumbis contemporâneos. 

Espelhos do Mundo.

Segundo Freud, a capacidade de dormir, aceitar se desconectar por um certo período de tempo implica em existir de uma maneira um tanto quanto indefesa. Uma verdadeira economia libidinal. Gozar de ser. Uma satisfação. Uma das experiências mais profundamente autoeróticas da vida humana. Um imperativo biológico!

É, Freud estamos sentindo muito.

Sentindo cada vez mais e acordados.

Andamos inquietos. Angustiados. São tantas dores, amores e temores. Mal-estamos.

Transtornos do sono e a insônia andam pairando em nossos quartos.

O tempo está sendo cada vez mais colonizado. 

Nosso sono está sendo roubado.

O sono que desce sobre mim,

O sono mental que desce fisicamente sobre mim,

O sono universal que desce individualmente sobre mim –

Esse sono

Parecerá aos outros o sono de dormir,

O sono de ser sono.

Fernando Pessoa, “O sono que desce sobre mim”.

Angélica Fontes

Psicanalista Winnicottiana, Educadora e Professora de Psicanálise e aprendiz de Psicologia.