AFETadOS

1 de maio de 2024

Eros mais uma vez

Imagem de Marius Sperlich


O que acontece quando se leva Audre Lorde, Bataille e Byung-Chul Han para dançar?

Sentiram o coração PuLsAr como se aquele e s p a ç o, gritaSSe por mais mundo.

A respiração descompassada evidenciava e denunciava o deparar com o todo outrora desconhecido, agora, reconhecido. O cheiro de alecrim colhido numa manhã despretensiosa exalada por aquela pele úmida, morna, trêmula, solta, densa, adentravam as narinas e tomavam conta do por dentro. Ampliava.
Corpos que se tocavam e se embalavam mais um vez.
Duas humanidades.
Duas histórias.
Emoções.
Sensações.
Percepções.
O hiato do tempo que a partir dali seriam escritos e inscritos num espaço-tempo. Num corpo-poema.
Na pele.
Nos poros.
No pelo.
Na potencialização dos corpos. Por fim, ou por inícios. Eros acontece…
Receber a presença de um outro corpo, de um outro ser, singular, sustentar de maneira bastante intensa e com leveza a imprevisibilidade, a precisão e o precisar de cada movimento.
Alteridade.
Temporalidades.
Tempo.
Toque.
É romper limites.
É evocar Eros para escrever e pincelar movimentos, sutilezas de cada i n s t a n t e.
Entre braços, o abraço.
Continente.
Eros, se permitido, evocado, presente.
Eros é expropriação.
Eros é o acontecimento do real.
É colher a realidade.
É acolher a realidade.
É a porta para a presença, do absolutamente diferente.
A perda do eu. E eu também sou o que não sei de mim.
O estado em que coloco meu eu em questão.
Um estado de complementação que não há.

Byung-Chul Han, em seu livro a salvação do belo, nos mostra que na presença do belo, o sujeito agrada-se a si mesmo. O belo é um sentimento autoerótico. Não é um sentimento do objeto, mas do sujeito. O belo não é algo diferente porque o sujeito se deixaria arrebatar. A complacência no belo é a complacência do sujeito em si mesmo.

Audre Lord nos presenteia em um dos seus textos de Use of the Erotic: The Erotic as Power, que o erótico não é sobre o que fazemos; é sobre quão penetrante e inteiramente nós podemos sentir durante o fazer. E uma vez que saibamos o tamanho de nossa capacidade de sentir esse senso de satisfação e realização, podemos então observar qual de nossos afãs vitais nos coloca mais perto dessa plenitude. O erótico é este cerne dentro de mim, quando liberado do seu invólucro intenso e constritor ele flui através de minha vida colorindo-a com um tipo de energia que amplia, sensibiliza e fortalece toda minha experiência, a sabedoria erótica nos empodera.

Há muitos tipos de poder: os que são utilizáveis e os que não são, os reconhecidos e os desconhecidos. O erótico é um recurso que mora no interior de nós mesmas, assentado em um plano profundamente feminino e espiritual, e firmemente enraizado no poder de nossos sentimentos não pronunciados e ainda por reconhecer. Para se perpetuar, toda opressão deve corromper ou distorcer as fontes de poder inerentes à cultura das pessoas oprimidas, fontes das quais pode surgir a energia da mudança. No caso das mulheres, isso se traduziu na supressão do erótico como fonte de poder e informação em nossas vidas. Fomos ensinadas a desconfiar desse recurso, que foi caluniado, insultado e desvalorizado por pela sociedade ocidental. De um lado, a superficialidade do erótico foi fomentada como símbolo da inferioridade feminina; de outro lado, as mulheres foram induzidas a sofrer e se sentirem desprezíveis e suspeitas em virtude de sua existência. Daí é um pequeno passo até a falsa crença de que, só pela supressão do erótico de nossas vidas e consciências, podemos ser verdadeiramente fortes. Mas tal força é ilusória, porque vem maquiada no contexto dos modelos masculinos de poder.

Winnicott, em seu livro “O Brincar e a Realidade” escreve que por meio da criatividade, expressões humanas tomam forma e manifestam estados intelectuais e artísticos que moldam a realidade na qual vivemos, compreendendo-se que no criar nos desenvolvemos como humanos e civilização. Nesse sentido, é pela via da criatividade que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida.”

Para Bataille, em, “O erotismo”. a transgressão do humano é o ápice do humano. O erotismo é a experiência interior dessa transgressão, desse ápice: A experiência interior do homem é dada no instante em que, quebrando a crisálida, ele tem a consciência de dilacerar a si mesmo, não a resistência oposta de fora.

Dancemos, pois.
Rompamos d e v a g a r.
Contemplemos, sintamos o belo.
Brinquemos com os movimentos que o corpo e o encontro nos oferece.
Resistamos.
Busquemos na presença do outro; à nós.
Percamo-nos.

E assim, Eros mais uma vez!

Angélica Fontes

Psicanalista Winnicottiana, Educadora e Professora de Psicanálise e aprendiz de Psicologia.