Um dos assuntos mais debatidos na Internet nos últimos dias foi a “PEC 3 de 2022”, que tem como objetivo alterar a gestão das áreas costeiras, especificamente, os terrenos de marinha, permitindo a privatização dessas áreas que atualmente pertencem à União.
A proposta, de iniciativa do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), a qual, confesso, tive que fazer um esforço triplo para analisar de forma imparcial (pela aversão que o nome me gera), tem como objetivo transferir a propriedade dessas áreas para particulares, com o intuito de promover um desenvolvimento econômico mais dinâmico e eficiente das regiões costeiras.
Os defensores argumentam que a privatização pode atrair investimentos, melhorar a infraestrutura, gerar empregos e aumentar a arrecadação de impostos, promovendo um uso mais eficiente e sustentável das praias. Essa última parte deixo para os utópicos que acreditam que resorts e empreendimentos de grande luxo terão algum interesse sustentável.
Em contrapartida, opositores e especialistas defendem que a proposta geraria desigualdade social, (vez que limitaria o acesso); impactaria no meio ambiente, promoveria a descaracterização cultural e a erosão dos direitos públicos.
Por assumida ignorância no que diz respeito aos impactos ambientais, dou voz aqui para Isabela Cavalcanti Lanute, gestora ambiental formada pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz – ESALQ/USP, educadora socioambiental e defensora do direito à natureza e da existência das comunidades tradicionais:
É muito importante refletir a quem serve uma proposta de emenda à constituição federal que permite a privatização de terrenos na região costeira. Os defensores da PEC alegam que a mudança incentiva o investimento em infraestrutura e empregos. É a lógica do desenvolvimento ligada ao capital.
Ninguém está falando em incentivo a políticas públicas e iniciativas de conservação ambiental no litoral. Muito menos em apoio e valorização de comunidades caiçaras e tradicionais que vivem nesses lugares.
Recentemente, acompanhamos uma manifestação contra a construção de um resort na ilha de Boipeba, na Bahia, encabeçada por comunidades tradicionais da região, que alegavam não querer deixar seus modos de vida e sobrevivência, baseadas no extrativismo e no turismo cultural, para empregos precarizados em um resort milionário.
A PEC simboliza a entrega das nossas praias a uma elite, em detrimento do bem-estar, vida e lazer da classe trabalhadora, e também da conservação de tantas belezas naturais que ainda temos. Estejamos alertas! Praia é um direito e patrimônio de todos nós!
Recomendo o documentário “Caiçaras e donos do PIB tentam solucionar embate de mais de 40 anos em Paraty”, que é um exemplo do tipo de conflito que podemos gerar caso essa PEC seja aprovada”. https://youtu.be/L0zoi2agzEA?si=INAYkg_M6q9UoaUI
O documentário mencionado por Isabela traz ainda outra perspectiva dos impactos que a PEC poderia gerar à comunidade caiçara. Não se trata apenas de impedir o acesso às praias, mas também de matar o comércio local.
Nesse contexto, pergunto aos defensores da pauta “fomentação da empregabilidade” se o emprego de camareira de um resort 5 estrelas oferecido para Dona Lúcia seria uma troca justa pelos 40 anos de labuta no seu próprio restaurante à beira-mar?
A ideia de uma “Cancun brasileira” é nada mais que a morte da nossa própria identidade. Elitizar as nossas praias é matar a nossa cultura. Não, não quero romantizar uma realidade utópica e não estou dizendo que hoje inexiste desigualdade no nosso litoral. Mas lá, onde a maresia toca as nossas cores, eu diria que quase conseguimos acreditar que as linhas que nos dividem foram apagadas com samba e ondas do mar.
Negar o acesso é desistir das nossas linhas sucumbidas à maresia e construir muros de concreto para as nossas diferenças. É esquecer que somos filhos do mesmo solo e que Iemanjá beija nossas rosas brancas toda meia-noite do dia 1º de janeiro.
Mas ainda estamos em tempo de bom senso. Eu gostaria de dizer empatia, mas me contentaria apenas com o bom senso dos nossos senadores. O próximo passo da PEC será a votação na CCJ (composta por senadores e suplentes) e, se aprovada pela comissão, a PEC seguirá para o plenário do Senado.
Quanto ao ibope para subcelebridades desprezíveis como Neymar Jr., opino pelo escanteio. É mais importante lembrarmos dos nomes que compõem a CCJ e que deveriam, como representantes do povo e eleitos por este, defender o interesse público e não apenas uma parcela privilegiada da população.
Por fim, faço um apelo: posicione-se, proteste, vote. Que o nosso barulho cause mobilizações sociais e políticas para que o brasileiro se recorde de que o mar, para nós, é santuário. Religião universal. Território democrático. Um Deus coletivo.