Elos, Fatos & Afagos

17 de abril de 2025

Na cidade dos cegos.

foto: https://www.flickr.com/photos/bellajo415/7039623885

Outro dia, uma amiga minha me contou que estava completamente presa em uma cena que havia vivido recentemente. Ela disse que saía do Teatro Municipal com a sua filha, no centro de São Paulo, após ver uma das suas apresentações favoritas: o “Balé da Cidade”.

Ao sair, em frente ao teatro, se deparou com um cantinho — e cobertores no chão que se moviam. De lá, saiu um filhote, um cachorrinho caramelo (típico brazuca), acompanhado de uma cordinha que o prendia a um carrinho de recicláveis. Segundos depois das cobertas “moventes”, saiu debaixo também — como quem tira da cartola mais uma mágica — um homem de aproximadamente 55 anos, que vivia ali, naquela “cartola”.

“Aquela imagem vai ficar na minha mente para sempre.”

Ele tinha apenas três dentes e um cabelo grisalho que parecia ter sido cortado pelo melhor cabeleireiro do mundo.

“Eu fiquei hipnotizada por aqueles fios cinza e despojados e, naquele mesmo segundo, ele sorriu com seus poucos dentes e me disse: ‘Vê o que ele faz com o meu cabelo, moça? Ele não me dá sossego… e olha, foi achado no lixo.’

A minha amiga, ainda hipnotizada, respondeu: “Parabéns por isso.” E aquela cena foi encerrada com a voz livre e cinza: “É… isso não tem dinheiro que pague.”

Fiquei pensando por semanas naquela cena — que o melhor corte do mundo, na verdade, era a bagunça de um ato de amor — e quanta poesia há nisso.

Poesia em pensar que é necessário se deixar bagunçar às vezes, pois há muita beleza na desordem. Poesia nos olhos da minha amiga que, mesmo na cidade do caos, onde tudo é efêmero e passamos completamente cegos, pôde enxergar aquele recorte de ternura paulistano.

Pensei, então, em todas as vezes que não enxerguei.

Que não doei um sorriso, que não me entreguei à ternura.

Em todas as vezes que tropecei no relógio, caminhei me deixando ser engolida pelo cimento, pelo concreto, pelo engarrafamento.

Em toda vez que não reparei no ser humano e, por conta disso, deixei um pouco de ser humana também.

Mas aquela cena, vista pelos olhos dela, se tornou meus óculos de gente.

Te convido a enxergar também.

Fernanda Padilha

Advogada, professora, especialista em Direito de Família e Sucessões e Doutoranda em Direito Civil pela Universidade de Buenos Aires, Argentina.

Escritora do Projeto Cultural Útero (Projeto aprovado pela Administração Pública Municipal e que tem como objetivo abordar pautas feministas de forma artística).

Amante da arte e defensora dos emocionados. Acredita no poder desmistificador das palavras e na força revolucionária do afeto.

  fernanda.padilha.ppndadvogados@gmail.com