AFETadOS

18 de dezembro de 2023

O eco do oco

Pintura de Georgia O’Keeffe

– Faça força!

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Força era algo que vinha de dentro da alma. Ali soube…

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Vinte e quatro de dezembro de anos atrás.

Noite quente, silenciosa, uma noite típica de uma típica cidade conservadora de um dia de verão.

Naquele dezembro, como todos os dezembros, a cidade se agita e é agitada pelo movimento do último mês do ano, o mês dos últimos suspiros, do quase lá, do balanço que balança a vida. Dos resquícios das forças. Da espera de alguns dias do permitido descanso e recálculo de rota. Corpos que se movimentam em busca de algo. Algo que se sabe. Algo que se esconde. Algo que talvez nunca saberão. Compras que simbolizam tanto, um tantinho do dentro de cada um. Idas e vindas, um trânsito semi-caótico, típico de uma cidade do interior que aspira crescer. Quiçá amadurecer.

Era madrugada.

O silêncio silenciava os afetos afetados pelos acontecimentos antanhos.

Bem dormir já era algo não tão vivenciado. Vidas também se agitavam dentro de mim. Elas, também cresciam…

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Junho dos mesmos anos atrás.

– Gemelar, gema, ovo…

Essa palavra ainda não existia no meu vocabulário.

– Dois! Olhe aqui. Dois corações batendo.

Aquele obstetra, conhecido pela braveza que eu nunca conhecera, ali, olhando amorosamente nos meus olhos, esperando eu assimilar e relacionar aquelas imagens às palavras. Me esperando retornar.

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As Mães nunca retornam deste momento. Sempre estão lá. Sempre que podem e querem, voltam pra lá. De diferentes maneiras. Em dias distintos. Quando a lembrança abraça. Quanto o peito chama. Quando a alma sente falta.

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Os dias seguintes eram contados e esperados.

A ânsia pelo encontro sobrepujava as ânsias sentidas.

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– Vá para o Hospital! “deus escreve certo por linhas tortas”.

Enquanto a cidade piscava e festejava eu me vi deitada. Sozinha. Sem saber o que sentiria. Como seria. Se teria meus dias em linhas endireitadas. Eu não sabia. Só sentia. Só, sentia. Sentia muito.

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As meninas, muitas delas, crescem com um sonho embutido. Um sonho ensinado. Eu aprendi. Aprendi a querer ser Mãe. Quis. Sonhei.

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– Duas Meninas?

Meses adiante fui me tornando Mãe de Rafaela e Rebeca. Uma gestar querido. Doído. Sonhado. Inconstante. Cuidado. Assustado. Visitas ao Hospital. Repouso. Ajudas. Alegrias. Sustos. Risos. Sangue. Dores.

Tecemos nossa história juntas. Dentro do coração. Dentro de um Útero. Dentro de um sonho.

*

Madrugada de vinte cinco de dezembro. Enquanto as celebrações aconteciam do lado de fora, do lado de dentro o clima era de espera, pelas tais linhas se endireitarem ou serem endireitadas.

Mas, as linhas foram se entortando. Nunca imaginei que vivenciaria momentos assim. A mão na barriga continuava. Era preciso acompanhar as vidas na minha.

Me lembrei do copo com leite e chocolate com um bilhete e pedidos ao Papai Noel de muitos anos atrás. Se eu soubesse…

Foi inevitável não conhecer a “Sala de pré parto” antes da hora. Rafaela me chamou a senti-la ir. Integrar a Vida. A mãos que embalariam aquele mundo, sentiram os movimentos finais. Aos poucos sua dança cessou. Senti a morte.

Rebeca ainda “conversava” comigo.

*

– Faça força!

Convoquei todas. As quais não tinha, criei.

Em alguns longos minutos já não faziam parte do mundo de dentro. O mundo já as tinham recebido.

– Angélica, a primeira nasceu sem Vida. A segunda, levamos às pressas para a UTI Neonatal.

Já no quarto, eu esperava ansiosa a hora da visita. Minutos antes das quinze horas recebo a notícia que não conseguiria mais. Rebeca se foi. Ali, meu coração doeu como eu nunca imaginava que pudesse doer. Uma dor que rasga o corpo por dentro. Uma dor que convoca todos os órgãos a arderem. Se contorcerem. Uma dor que convoca um grito que nasce das entranhas e percorre as veias até serem cantados em alto som. Som de quem artesanou Vidas. Som de uma Mãe.

Horas depois, nos despedimos. Rebeca seguiria para algumas pessoas íntimas poderem a olhar. Conhecerem e se despedirem.  

Rafaela, devido a regras do hospital ficou em algum lugar. Até hoje não sei.

Assim, todos os Natais, faço Arte. Realmente a Arte existe porque tantas coisas não bastam. A cada ano inauguro novas formas de me relacionar com esta história. A cada ano as histórias me contam. Sobre a dor do luto? Luto. Luto é Arte. Luto é sabermos e contarmos aos poucos à alma que não tem mais. Não como gostaríamos. Luto é ter meios para qualificar a dor. Dar dignidade. Luto é dançar na presença da fogueira sob o pôr do sol no mirante. Luto é olhar para o céu e saber que elas estão inscritas no meu corpo. Na alma. Na minha história. Luto é poder acolher este tema quando necessário. Luto é chorar. Luto é poder ser ouvida quando a história pede para ser contada. Luto é celebrar a existência de quem ficou invisível, dentro de nós. Luto é pedir colo. É poder transmitir ensinamentos sobre os caminhos que a dor percorre. É sustentar junto com alguém uma dor. Luto é escrever, saber que a poesia sempre está esperando ser escrita.

*

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Agora, a minha, uma dor compartilhada. Uma história que percorre por aí. Uma dor dividida. Uma história que encontra as outras para esperarem outras serem vividas e juntas serem histórias contadas. Histórias como esta são suspiros. São linhas que contam sobre a Vida. Seus saberes e seus mistérios.

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À todas, todes e todos que (direta e indiretamente) gestaram.

Que façamos Arte!

Que poetizemos as existências!

Angélica Fontes

Psicanalista Winnicottiana, Educadora e Professora de Psicanálise e aprendiz de Psicologia.